NORBERTO ÁVILA

 

EXORTAÇÃO A UM HOMEM RENASCIDO

 

(Conto / 2010 / Inédito)

Para Aires Reis

 

“Agora, meu pai, vai ser preciso muito cuidado. Veja lá se, por um simples descuido, uma tontaria qualquer, deita tudo a perder!”

Esta tão apreensiva recomendação era de Isidro, que naquela tarde de junho havia acompanhado o pintor Herberto Alvarim à moderna clínica Centroftalmo e ali aguardou que ele fosse operado às duas vistas. Acabava de reconduzi-lo à velha casa da Penha de França, onde ele vivia normalmente sozinho, aos 65 anos, viúvo de Eunice, falecida de cancro. Não dispensava porém o consagrado artista a preciosa ajuda duma mulher-a-dias, romena (ou moldava?) duas vezes por semana, para tarefas menos apetecíveis, como as limpezas e arrumações. Quanto ao engenheiro naval Isidro Alvarim, esse habitava uma aparatosa vivenda de beira-mar, com a jovem esposa e um filhote de 4 anos.

“Não querendo tornar-me impertinente… mas conhece bem a minha franqueza…” disse o engenheiro, preparando para os dois um sumo de laranja. “Quem sabe se não seria mais prudente, mais aconselhável, enfiar na maleta meia dúzia de pertences mais necessários e vir comigo até Oeiras? Sempre se haveria de sentir menos desacompanhado, mais protegido…”

“Ora, ora. Não quero, de modo nenhum, que tu e a Mercedes se preocupem demasiado comigo. Esta intervenção cirúrgica, de que cheguei a ter algum receio, confesso, acabou por correr maravilhosamente em todos os aspetos. E queres saber o que eu disse ao Dr. Orlando Aguilar e à sua equipa, terminado que foi o trabalho operatório?”

Isidro interrompeu a espremeção do fruto suculento, para melhor escutar a revelação. “

‘Estive aqui, podem acreditar, muito mais à vontade do que na cadeira dum barbeiro.’ – Riram-se, satisfeitos, quase tanto como eu próprio.”

Do mesmo modo divertido com aquela saída bem-humorada, retomou Isidro a preparação da bebida. E o pintor acrescentou, quase desnecessariamente: “Não ignoras que sempre detestei que me fizessem a barba! (Depois de morto, em preparativos de velório, talvez isso me incomode um pouco menos.)”

Iam sorvendo o sumo de laranja e, como complemento, mastigando uma mistura de passas, pinhões e pistácios, que Herberto fora buscar a um armário da casa de jantar. E o generoso Isidro tornava a insistir na proposta de levá-lo para Oeiras, recebendo sempre do pai a mesma resposta: de que não; ficaria muito bem sozinho. Caso surgisse algum imprevisto, algum problema, então telefonaria. E aceitava, sim, ir passar o fim de semana com o filho, a nora e o neto. Pois não obstante ouvir tão tranquilizadoras palavras, prometeu o engenheiro voltar a visitá-lo no dia seguinte. Com a mulher e o miúdo…isso talvez mais para o meio da semana. Quarta ou quinta-feira.

“Vai descansado, meu filho, e não prejudiques a tua vida por minha causa. Já foi uma grande ajuda teres-te disponibilizado, pedindo dispensa lá na empresa…”

Isidro depositou um beijo na face do pai e dispunha-se mesmo a sair. Mas suspeitou que o sol de junho, tão copiosamente disperso pelos móveis e pela alcatifa, não seria muito propício à convalescença paterna e logo se apressou a correr o reposteiro, deixando-o apenas entreaberto. “O pai faria bem em estender-se aí no sofá, a repousar. Na minha modesta opinião, nada de leituras, de forçar a vista a ver televisão, de enfronhar-se no computador…”

“Pois sabes o que me disse o Dr. Aguilar?” E pausou um instante. “Que fizesse desde já a minha vida normalíssima. Só me recomendava que ainda hoje não conduzisse. Respondi-lhe que não teria essa tentação.” Fez outra pausa de efeito. E completou o motejo: “Porque nunca tivera automóvel… nem carta de condução.”

E não tardou que o automóvel sempre disponível do engenheiro arrancasse lá fora.

Aproveitou Herberto esta circunstância para deslocar-se à casa de banho. E, embora esse não fosse o motivo, inevitável lhe foi o examinar-se ao espelho. Desvendaram-se-lhe então umas rugas de que não tivera a mínima perceção. Também os cabelos brancos lhe pareceram assumir mediana representatividade. Mas nem uma coisa nem outra o preocuparam sobremaneira. Depois, ao escovar os dentes (porque havia almoçado fora com Isidro), achou que, antes do prometido repouso, deveria deslocar-se à farmácia, ali muito perto, a buscar os medicamentos prescritos pelo cirurgião.

Não gastou um quarto de hora. Despiu então a camisa e as calças. Decidiu ficar apenas com um quimono de seda fina sobre a roupa interior. E voltou à sala de estar, para alongar-se bem à vontade no sofá, aplicar às vistas, alternadamente, os dois colírios que trouxera e deslizar numa ou duas horas de tranquilidade absoluta.

E diz agora o omnisciente e omnipotente autor da história (que acumula funções de narrador): “Ah, vais estender-te no sofá, a descansar? Que momento haverá mais indicado e oportuno para desencadear as tuas rememorações de novíssimos acontecimentos?”

Nesta conformidade (e em retrocesso), digamos então que tinha o nosso pintor decidido, finalmente, arrumar uns livros de arte dispersos por um lado e outro. E, subindo a um escadote, para alcançar as prateleiras mais altas, aconchegava os óculos no nariz. Eis senão quando (caso nunca visto!) como diria o poeta Nicolau Tolentino, permanecendo em seu lugar uma das hastes, com a respetiva lente, a outra, com a lente do lado direito, precipitou-se atabalhoada no rebordo do armário da estante e acabou por ter feliz acolhimento no chão espessamente alcatifado.

“Pronto. Desta vez é que é,” pensou Alvarim. Pois ele havia males que vinham por bem. Agora teria mesmo de ir ao Instituto Santa Luzia, substituir aquela geringonça; adquirir óculos mais apropriados à situação atual, já que a progressiva deficiência visual dos últimos tempos a isso mesmo aconselhava.

E, sendo isto num fim de semana, claro que teria de remediar-se até que o assunto fosse levado a bom termo, logo a partir da próxima segunda-feira. De qualquer modo, não se havia desfeito dos óculos de aro dourado, imediatamente anteriores; cujo alcance, em matéria de eventuais “desnevoamentos”, era bem reduzido, como seria de esperar. Ora, se os óculos sinistrados estavam um tanto ultrapassados, os precedentes estariam seguramente ultrapassadíssimos!

Digressionava o nosso pintor nestas cogitações miudinhas quando o telemóvel, pousado mesmo nas costas do sofá, se fez anunciar com uns compassos eletrónicos da Marcha Turca de Mozart, preludiando a voz afetuosa de Urbínia Monsaraz, a bem conhecida e conceituada galerista de artes plásticas.

Olhou o radiante visor do aparelho e surpreendeu-se com as sete letras de Urbínia. “Ora viva!” exclamou ele, e sorriu de bom grado.

“Viva!, digo eu também, Herberto! Sempre é verdadeira a notícia que me transmitiram há instantes?: que ias ser…”

“Operado à vista? Já fui. Dito e feito. Como soubeste?”

“Disse-me a Fernanda, minha secretária. Que tinha falado com um dos nossos pintores exclusivos: o Carlos Mascarenhas. Pensavas que o teria lido no New York Times?”

“Ou mais provavelmente na Gazeta do Olvido.”

“Se há quem tenha culpas no cartório…“

“Do meu quase desaparecimento do mundo das Artes… sou eu culpado, antes de qualquer outro.” Fez uma pausa. E completou a declaração: “Eis-me, porém, um homem renascido!”

“De veras? Pois muito me alegro, como podes imaginar!”

“Obrigado, Urbínia. – Onde é que estás, se não é indiscrição?”

“Algures, já muito próximo de Coimbra. É que venho do Porto. – Mas falemos do mais importante: Como correu então a intervenção cirúrgica?”

“O meu fraco entendimento nestas matérias diz-me, mesmo assim, que tudo correu impecável e maravilhosamente. – Foste à ‘Invicta’? De comboio?”

“Agora só levo o automóvel no caso de estadias mais prolongadas.” E contou-lhe que tinha ido apenas por três dias, para dar alguma assistência àquela sua segunda galeria de arte (que, inaugurada há mais de quatro anos, Herberto ainda não conhecia).

O artista deu mostras de rejubilar-se com o particular cuidado e a gentileza de Urbínia. Lamentavelmente, naqueles últimos cinco ou seis anos já ele lhe não aparecia na Galeria Alicerce, em Alcântara, onde expusera com razoável assiduidade, digamos que por todo o decurso da década de 90.

E a enérgica, laboriosa galerista ainda guardava nas suas reservas algumas obras dele (muito poucas), daquela fase dita “de transição”, de um figurativismo abstratizante.

Natural que houvesse ali uma súbita convergência de gratas recordações, de afetuosos pensamentos. Pelo que não tardou que se manifestasse o impaciente desejo de se reverem um ao outro.

“Porque não ainda hoje?” perguntou Alvarim.

“Credo, homem! Por mim não haveria problema. Mas tu, creio eu, hás de precisar dalguma tranquilidade, para uma rápida e proveitosa recuperação…”

“Ora, ora. O prático e experiente cirurgião logo me disse que fizesse a minha vida normal, tudo como habitualmente.”

Então, perante a insistência do artista, deu-lhe Urbínia Monsaraz a sua concordância. Mal chegasse a casa e perguntasse como corriam as coisas na Galeria (sediada no mesmo edifício), de pronto iria fazer-lhe uma visitinha. Passaria entretanto por um restaurante da sua frequentação e levaria algo que pudesse servir-lhes de jantar.

“Pois muito bem, cara amiga,” disse Alvarim, “alegro-me muito com a tua generosa e prodigiosa Visitação… Estou a falar bem? A Visitação de Santa Urbínia a um Lázaro das Tintas e Pincéis!”

Ela finou-se de riso. E ele: “Até logo. Não venhas muito tarde.”

“Farei os possíveis.” “Agora já te verei com bons olhos, acredita.” “Espero bem que sim.”

Despediram-se os nossos protagonistas. E Herberto, com o ânimo ainda mais reforçado, ergueu-se e dirigiu-se ao modesto ateliê. Ligou o computador e lançou uma vista de olhos pelo correio eletrónico. Nada de muito importante ou de urgente resposta.

Depois, como se uma vez mais quisesse pôr à prova a nova capacidade visual, deu-lhe para esquadrinhar o seu próprio site na Internet, algum tanto desatualizado, é certo, mas em que abundavam, como é natural, excelentes reproduções de obras suas. A perda de pertinência daquelas páginas desgostava-o quase como um sinal de haver parado na carreira artística. Lamentável, o facto de nos últimos anos, a bem dizer, não ter produzido obra que valesse a pena ser mostrada, depois de algum fulgor criativo em períodos anteriores.

Ia revendo quadros seus, de várias fases, disseminados por muitos museus, galerias e coleções particulares de Portugal e outros países da Europa, do Brasil e dos Estados Unidos da América. E procurou mesmo um dos seus preferidos, (“de antanho”, como ele gostava de chamar aos recuados tempos da sua criatividade), em que a doce Urbínia, na esplendorosa nudez dos seus vinte anos… Um quadro de média dimensão que ele próprio oferecera à retratada, seu modelo mais frequente (ou quase exclusivo) entre 1981 e 1983. E ela sempre disse ter em grande apreço aquele retrato que, sem qualquer receio de escandalizar algum visitante mais pudibundo, mantinha bem visível em casa, a um lado da secretária do escritório.

Com redobrado prazer ordenava Herberto Alvarim o desfilar daquelas imagens que tanto lhe diziam (por si mesmas, como obras de arte, ou pelas gratas recordações que lhe suscitavam), agora que se sentia bastante mais capaz de as apreciar devidamente. Do figurativo mais académico ao abstrato mais insubmisso e espontâneo, quanto caminho andado! (Com alguns acidentes de percurso, é certo.) Pois já nem se lembrava de toda aquela riqueza cromática, dos suaves matizes às cores mais intensas, vibrantes!

Sem desligar o computador, regressou à sala de estar. Voltou a estender-se no sofá, absorto nas suas recordações.

Intervém uma vez mais o autor-narrador omnipresente, omnisciente e omnipotente: “Isso! Era isso mesmo o que eu desejava que fizesses! De qualquer modo, Urbínia terá ainda a sua demora. Ou talvez não. As demoras em ficção narrativa, – e ainda bem! – não são duradouras, prolongadas quanto as da vida real. Entretanto, Herberto, vai recordando, vai reflexionando. Um pequeno contributo: “Já apreciaste a nitidez da tua foto matrimonial?…”

É então que, na sequência de semelhante incitamento, Herberto Alvarim, de novo refastelado no sofá, dirige o olhar para a referida foto, magnificamente emoldurada e suspensa na parede mesmo em frente. E, coisa com a qual já não se surpreende mas de que na verdade se alegra sobremodo, consegue observá-la em mínimos pormenores. Eunice e Herberto impecáveis de elegância nos seus trajes nupciais, irradiando ambos uma indescritível, infinita felicidade.

Depois, na plácida recordação do artista, o repentino e doloroso contraponto: a imaginária figuração daquela esposa exemplar, trinta e seis anos depois, amortalhada em caixão de mogno, entre círios acesos e numerosas coroas de flores, na presença de tantos parentes e amigos de ambos. Sem que pudesse esquecer Urbínia, pois com certeza.

Rememorando o verdadeiro calvário que foram os anos antecedentes à morte daquela mulher adorada, constatava como se lhe havia reduzido consideravelmente a produção artística. Convertida em quase nada, a bem dizer. Só queria estar ao lado dela, fazendo-lhe companhia.

Um ou dois anos depois desta perda, que lhe parecia irreparável, era-lhe mais e mais percetível o agravamento das cataratas. Por estas consecutivas razões isolava-se muito. Quase não comparecia na inauguração de exposições. (Urbínia bem lhe enviava os habituais convites, pelo correio normal e por correio eletrónico.) Deixara de ir aos concertos musicais, ao teatro, ao cinema. Raramente os parentes e os amigos o convenciam a juntar-se-lhes, em algum convívio. No âmbito familiar, digamos que o casamento de Isidro e o consequente nascimento daquele seu neto, logo no ano seguinte, terão sido as exceções de maior notoriedade social.

Mergulhava ainda nestas cogitações quando, no declinar do dia, cerca das 9 horas, chegou Urbínia. Bem disposta e dinâmica, incansável como sempre.

Rondava a galerista os quarenta e cinco anos. Deixou numa cadeira os embrulhos que trazia. Cumprimentaram-se então ela e Herberto, jubilosamente, com abraços muito afetuosos e intercâmbio de beijos nas faces.

Sobre esta anunciada visitante convém pelo menos dizer que entre 1983 e 1985 (tendo ela então 18-20 anos) frequentou, com invulgar devoção, o primeiro ateliê de Herberto Alvarim, em Campo de Ourique.

(Descarada ironia do autor-narrador, debitando semelhantes informações, enquanto os protagonistas… esperam. Mas não haja preocupação. Estão ainda abraçados. Comedidamente. Por enquanto. Depois, logo se verá. Ora, uma imagem “paralítica”, se me é permitida a expressão.)

Depois de 1985 – e até 1990 – trabalhou Urbínia numa galeria de arte (cujo nome nem me dei ao trabalho de inventar) e estudou belas-artes, até que uma surpreendente herança recebida, por parte duma tia e madrinha, lhe permitiu criar a sua própria galeria. E logo fez finca-pé, como era natural, para que Herberto Alvarim fosse um dos artistas de mais evidência ali representados. E ele, pela grande afeição que sentia por ela, aceitou o desafio e trabalhou com determinação para o efeito. Os prémios, a repercussão nacional e internacional não se fizeram esperar. Entretanto, sem fazer muito por isso, foi passando duma pintura figurativa já de muito ousada definição a uma pintura assumidamente abstrata.

Alto! Agora o autor-narrador adivinha que vai retinir o telemóvel de Herberto Alvarim. E desde já pode anunciar que se trata duma chamada de Isidro. Pelo que permite ao pintor e à galerista recuperarem a palavra e o movimento.

“Olá, Isidro,” disse o pai, “por aqui tudo a correr muitíssimo bem, às mil maravilhas.”

“Ótimo, ótimo. Pelo sim e pelo não, sempre quis certificar-me.”

“E sabes tu quem se dignou deslocar-se à Penha de França, para visitar-me?”

“Não faço a menor ideia. Quem poderá ser?”

“A sempre formosa e adorável… Urbínia Monsaraz!”

“Ui! Quem diria?! E que desastrado eu fui (embora involuntariamente) em querer à viva força privá-lo de tão agradável companhia…”

(Muito desejável é que fique no leitor – embora apenas sugerida por este fazedor de histórias – a ideia de que Isidro teria em grande apreço uma aproximação amorosa, ou mesmo conjugal, de Herberto com Urbínia.)

Mas retomemos o diálogo entre as personagens principais, que, pelos cálculos da galerista, haveria bem uns dois anos que não se encontravam.

Contou-lhe então o artista aquilo de que ela (e até os parentes e amigos mais chegados) não tinham o mínimo conhecimento: as cataratas de que sofria há vários anos. Do enevoado progressivo da vista direita, determinando absoluta invisibilidade, para além duma sombra translúcida. Mais: o enevoado da vista esquerda adiantava-se também algum tanto. Incómodo particularmente irritante era o que lhe provocava a luz do Sol ou qualquer outra luz muito forte. Via de maneira indistinta as pessoas e os objetos. Só quando um autocarro se chegava mesmo muito perto é que conseguia divisar-lhe o destino.

Por vezes esbarrava com alguém que lhe surgisse pela direita. E algumas pessoas se queixavam de lhe terem acenado uma saudação que ficara por retribuir.

Na quotidiana leitura de livros ou jornais – e o mesmo se diga de frequente pesquisas na Internet – não deixava de ter a impressão de que os textos se lhe apresentavam em cinzento escuro, nunca em preto, como seria o mais normal. No seu trabalho pictórico, receando haver perdido a noção exata da intensidade das cores, evitava aplicá-las demasiado fortes e vibrantes.

“Meu Deus!” exclamou Urbínia Monsaraz,” nunca imaginei que pudesses ter esses problemas!”

“Nem mesmo o Isidro, por exemplo. Isto para ele foi novidade absoluta.”

“Caramba!” tornou a galerista. “E é que nunca ouvi, devo dizer, o mínimo comentário a esse possível desacerto cromático.”

“Ele há de haver três semanas, arrumando uns livros de arte no ateliê, deu-me para aconchegar os óculos no nariz (óculos desatualizados, confesso), que, sem qualquer pré-aviso, se desconjuntaram. Eram daqueles muito elegantes – não sei se te recordas – sem aro. De modo que, a título provisório, tive de recorrer aos imediatamente anteriores, esses, então, ultrapassadíssimos. Uma calamidade! Ainda aguentei uns dias, com a dificuldade que poderás imaginar!, mas não tardei em decidir-me a recorrer ao habitual Instituto Santa Luzia. O técnico, muito amável, que me atendeu e observou com os devidos aparelhómetros, evidenciou a sua honestidade: Seria desperdiçar dinheiro pretender apenas uma atualização dos óculos, sem remediar o que na verdade era bem mais importante: a operação às duas vistas. Fiquei inquieto. Cataratas! No entanto não me foi difícil concordar.

Pelo que ele próprio me pôs em contacto com um especialista de renome: o cirurgião Dr. Orlando Aguilar. O qual, recorrendo apenas à anestesia tópica, me operou esta tarde, logo depois de almoço.”

Tinham-se assentado entrementes: ela, num sofá; ele, num maple transversal, e concretizou: “Quando o dito cirurgião me falou em operar-me às duas vistas de uma vezada, não escondi uma ligeira preocupação. Mas acabei por manifestar-lhe a minha inteira confiança.”

E a dado passo, Urbínia: “Sendo assim, temos então um pintor… remoçado… e revigorado… ia a dizer: renascido!”

“Pelo menos assim me sinto, na verdade. Vamos a ver se isto não é um efémero, transitório sentimento.”

“Ora, ora! Quantos dias te disse o exímio cirurgião que deverias descansar?”

“Nenhum. Disse-me que poderia ter, de imediato, a vida absolutamente normal. A verdade é que, para vergonha minha, no plano artístico, não tenho feito coisa que se veja.”

Ela ergueu-se e, com um sorriso traquina e malicioso: “Ouve bem o que te diz a tua amiga e diligente galerista, Urbínia Monsaraz de seu nome: Até ao fim da semana… uns diazinhos de desejável recuperação. Principalmente psicológica. Quando muito, irás dando uma vista de olhos pelo ateliê, a averiguar se tudo está em ordem para um trabalho… porfioso, perseverante, persistente.”

Ele cruzou os braços, olhando-a um pouco de través, em jeito de amistoso desafio: “Como assim, Senhora D. Empresária das Artes?”

E ela: “Vamos lá a ver se chegamos a um acordo vantajoso para ambas as partes, meu caro Herberto Alvarim. E se poderemos anunciar uma exposição de obras tuas já para os fins de setembro, princípios de outubro…”

“De momento, não sei o que pintar. Nem como.”

“E terei de ser eu a ensinar-te?, caramba!” Deu uma volta pela sala, saracoteando os braços. “Porque não fazes, por estes dias, um estudo minucioso… das pétalas das orquídeas da Colômbia e da Nova Guiné… ou das asas das borboletas de Samatra e da Amazónia? Que melhores motivos poderias tu procurar para a pintura abstrata a que chegaste?, e muito bem!”

***

Por certo que o leitor não ficará indiferente à circunstância de Urbínia, no seu viçoso jardim da residência de Alcântara, dispor de um vasto pavilhão quase desaproveitado, o qual, sujeito a obras de criteriosa adaptação, bem poderia tornar-se o novo estúdio ou ateliê do artista. E, mudando-se ele para aquela casa que passaria a ser de ambos, poderia usufruir da contemplação direta e permanente do retrato que lhe era tão predileto, bem como daquele “ser adorável” que, nos tempos “de antanho”, lhe servira de modelo.

(Bem fundamentados, os argumentos da sapientíssima senhora.) E a verdade é que, vendida que fosse a velha casa da Penha de França, (era um argumento dele, por enquanto reservado em pensamento), daí adviria o suficiente para as obras do estúdio e para uma decente e decorosa celebração matrimonial.

E por aqui me fico eu, narrador desta comovente história de final em aberto à imaginação dos leitores, versando a vitalidade dum homem “renascido”, na perspetiva dum amor um tanto… tardinheiro, mas seguramente bem-vindo.

                                                                                                 NORBERTO ÁVILA

 

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