Apresenta-se o Autor com as suas Peças
Prefácio da coletânea Algum Teatro (20 peças de Norberto Ávila em 4 volumes); Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2009.
Ainda que seja mais frequente um dramaturgo (quer por vontade própria, quer por sugestão do seu editor) recorrer à solidária disponibilidade de quem conheça minimamente o seu trabalho para o teatro, também não será caso inédito que se decida ele mesmo a apresentar o texto isolado ou uma recolha dos seus escritos nesse domínio literário. Esta última alternativa foi a minha opção; reconhecendo embora o inconveniente de não favorecer o aparecimento de abalizados testemunhos e refletidas opiniões alheias, certamente estimulantes para o meu percurso vindouro e caucionantes do eventual valimento de quanto, contra ventos e marés, tenho ousado empreender em prol duma verdadeira dramaturgia portuguesa. Dadas, porém, as dispersivas ocupações profissionais a que nos sujeita a vida quotidiana, impensável seria importunar quem quer que fosse, comprometendo-o à sistemática leitura (ou releitura) de duas dezenas de peças teatrais, em 4 volumes, algumas até razoavelmente extensas. Pelo que – e seja isso um mal menor – me abalancei a assumir o escrupuloso empreendimento da sua apresentação, procurando salientar mais as minhas intenções de autor e a consequente concretização textual da imaginação criativa; menos, portanto, as eventuais virtualidades cénicas (suficientemente comprovadas) da maioria delas.
Vinte peças, portanto, e um título breve e despretensioso: ALGUM TEATRO. Rondavam as 3 dezenas as disponíveis no momento da seleção, pela qual sou absolutamente responsável. De umas e outras – selecionadas e preteridas –, direi o que me parecer mais a propósito, sem excessos de entusiasmo e apenas na mira de satisfazer a legítima curiosidade de eventuais leitores ou espetadores; quem sabe até, de possíveis encenadores ou tradutores.
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Das peças abruptamente relegadas (melhor dizendo: exterminadas pelo autor) pouco se há-de vir a saber. Quando muito, algum pesquisador mais pachorrento poderá encontrar nos começos epistolares dum escritor-por-fazer referência a algum título, a alguma temática tratada ou suscetível de tratamento dramatúrgico (digamos assim). Mas não! Ora quem iria preocupar-se com a salvaguarda de semelhantes ninharias referentes às incipiências dum autor juvenil? Deixemos portando de pensar nessa meia dúzia de textos dramáticos sacrificados em devido tempo, de muito reduzido mérito, pois com certeza, apenas aceitáveis como simples, rudimentares exercícios de escrita.
Já não direi o mesmo dessas outras peças sobreviventes a partir de 1959, as sete que antecederam as vinte selecionadas para esta edição. Porque, modestos degrauzinhos que possam ser consideradas, asseguraram às mais afortunadas companheiras uma distinção sobremaneira honrosa por parte da Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Pelo que não quero deixar de consagrar-lhes umas palavrinhas de consolação. E assim vai a referência, breve que seja, a cada uma delas, respeitando, já agora, a ordem cronológica. (E aproveito para mencionar um critério que sempre tenho seguido em relação a obras minhas: o ano, entre parênteses, logo a seguir a um título, é o da escrita; datas de representação ou publicação vão mais concretamente indicadas, com os nomes dos teatros ou editores.)
A DESCIDA AOS INFERNOS (1959). – Peça em 2 partes, publicada pela revista Rumo no ano seguinte. Viria a ser apresentada pela RTP (1966), tendo como principais intérpretes dois atores de primeira plana: Ruy de Carvalho e Paulo Renato, o que, para um escritor tão jovem e quase desconhecido, não poderia deixar de ser um estímulo considerável. Trata-se de um texto que põe em cena a ambição do poder empresarial (muito embora a leitura se possa fazer a um nível mais amplamente político).
O HOMEM QUE CAMINHAVA SOBRE AS ONDAS (1959). – Peça em 3 atos, edição de autor, Lisboa, 1960. Minha peça de estreia, no teatro amador, como já disse, nela quis abordar, duma maneira poética, o tema da emigração açoriana (neste caso, para o Canadá). Manuseando o volumezinho, publicado há quase meio século, nem me lembrava que havia incluído na primeira badana uma citação de García Lorca, de 1936: ano da sua morte: “El teatro necesita que los personajes que aparezcan en la escena lleven un traje de poesía y al mismo tiempo que se les vea los huesos, la sangre.”
O SERVIDOR DA HUMANIDADE (1962). – Um longo ato. Prémio Manuscritos de Teatro, nesse mesmo ano, o que por certo facilitou a minha estreia no teatro professional, com essa mesma peça: Teatro Popular de Lisboa (Estufa Fria, 1962). Também representada em Aveiro e Angra do Heroísmo. Transmitida pela Emissora Nacional, Rádio Clube de Moçambique, Radiotelevisão Portuguesa, etc. Publicada pelas Edições Panorama, Lisboa, 1963. Fantasia dramática em jeito de parábola, admitindo a hipótese de o protagonista ter descoberto um sistema que desvenda os pensamentos mais íntimos. Aplica-o o inventor num caso específico: o velório dum homem rico. Daí o sucessivo, surpreendente registo de sentimentos dos circunstantes (parentes e amigos) em relação ao alto personagem extinto.
O LABIRINTO (1962). – Peça em não-sei-quantas sequências (– Onde raio guardei essa “obra-prima”?), a última que escrevi antes da minha estadia parisiense e do grande impacto que constituiu a frequência da Universidade do Teatro das Nações (1963-1965), a assistência aos três longos festivais já referidos e a muitíssimos outros espetáculos decorrentes naquela cidade. Peça inédita. (Ou quase: em 1964, esta obra, então intitulada Viagem no Labirinto, foi apresentada, como leitura-espetáculo, na própria Universidade do Teatro das Nações.) Trata-se dum caso de amnésia, cujo protagonista, inteiramente desconhecido, luta pela recuperação da sua identidade, submetido aos sucessivos interrogatórios de quantos, bem ou mal, o representam na sociedade em que ele se (des)integra.
A PULGA (1965). – Peça em 1 ato, inédita. (Se bem me recordo, chegaram a estar bem encaminhadas conversações para a sua representação, em francês, no Festival de Teatro de Beirute…) E o assunto: o facto de um idoso, ainda bem conservado, deixar escapar uma pulga (acontecimento tão insignificante, na verdade; o que lhe desencadeia uma série de reflexões e temores sobre a inevitável decadência física e a eventualidade duma morte não muito longínqua…)
A ILHA DO REI SONO (1965). – Peça em 2 partes, a única que escrevi tendo em vista um público preferencialmente infantil, a convite da Companhia de Françoise Lepeuve, de Paris, que nesse mesmo ano a estreou, no I Festival de Nanterre. Publicada pela Plátano Editora (Lisboa, 1977) e por duas editoras alemãs: Verlag der Autoren (Frankfurt) e Henschel Verlag (Berlim). Representada pelo Teatro do Gerifalto (Lisboa, 1968) e pelo Schauspielhaus de Wuppertal (Alemanha, 1983); transmitida por várias estações de rádio de língua alemã. Traduzida também em servo-croata. Quanto ao assunto, assim o recordo, em duas palavras: Numa viagem de sonho, um rapazito (Manuel) arriba a uma ilha cujo rei justifica, com as permanentes insónias, a inatividade governativa. Depois, descobertas as causas dessas insónias, a inatividade real permanece: porque Sua Majestade passa o tempo a dormir… E é Manuel quem vai ministrando ao primeiro-ministro (duque da Atlântida, etc.) sugestões de sensata governação…
MAGNÍFICO I (1965). – Peça em 1 ato, inédita, a bem dizer uma obra de ficção científica, já que a ação (exterminada que foi a Natureza) decorre num futuro de “supercivilização”, com uma tendência para o suicídio coletivo, mau grado o reduzido tempo de trabalho e o elevadíssimo grau de conforto…
Eis, em poucos parágrafos as referências que pareceram minimamente apropriadas a sete das minhas peças mais antigas (com maior ou menor mérito de sobrevivência), escritas nos anos de 1959 a 1965. Se lhes juntarmos outras duas (O Pavilhão dos Sonhos e Memórias de Petrónio Malabar, muito posteriormente elaboradas e a pedir apresentação mínima), verificamos então serem nove as que não foram incluídas em ALGUM TEATRO.
O PAVILHÃO DOS SONHOS (1979). – Originariamente escrita para a televisão, mantém a sua estrutura em sequências e proporciona um espetáculo completo. Até à data não foi representada nem publicada. A ação decorre num pais imaginário da América Latina – Panamágua –, onde, após o entusiasmo duma revolução triunfante… dia a dia, por inaptidão governativa, ela se vai abastardando e perdendo.
MEMÓRIAS DE PETRÓNIO MALABAR (2008). – Peça para um só intérprete (uma novidade, portanto, na minha dramaturgia), expressamente escrita para a revista Prelo, da INCM (n.º 8, desse mesmo ano), que na versão atual se apresenta como um longo ato; numa nota de rodapé, porém, permiti-me esclarecer que se trata de um texto “suscetível de ampliação, mais conveniente a um espetáculo de duração normal”.
Petrónio Malabar é um imaginativo e presunçoso comediante octogenário a viver numa denominada Casa dos Atores, em 2008. Em assíduo contacto telefónico com Carlos Finisterra (ator muito mais novo, seu discípulo e assistente de encenação), vai-lhe ditando as suas Memórias, com sucessivas alterações, ultrapassando muitas vezes o limite do verosímil. A dado passo, por exemplo:
PETRÓNIO – Trato, logo nos primeiros dias, de conhecer bem a cidade e contactar com o meio teatral. Apresento-me como ator e encenador português. E logo me recebem entusiasticamente. É então que o diretor do Teatro Fuenteovejuna se oferece para apresentar-me a Fidel, que logo no dia seguinte me recebe, com grande cordialidade, por entre fumarada de havano (genuíno, claro!). – Ó Finisterra, pare com essas risadas que me dão volta ao estômago! (Pausa. Serenando:) Não tardou o convite para encenar em Cuba uma peça portuguesa. Talvez esta, talvez aquela… E adiantei-lhe um título: O Pavilhão dos Sonhos. Fidel fixou-me um instante, desconfiado. Expliquei-lhe que a peça decorria num país imaginário da América Latina: Panamágua, que teve uma revolução bem sucedida; depois, triunfoso, esse país a foi deixando perder. Ele, com os nós dos dedos, bateu três pancadas no tampo da mesa. E congeminou então uma resposta breve, nestes termos: Que voltaríamos a falar no assunto. Mas que, para já, receava ser aquela uma das peças que trazem mau agoiro, como o Macbeth, cujo nome alguns britânicos não ousam pronunciar, dizendo sempre “a peça escocesa”…
Passemos então ao que mais importa: um vislumbre identificativo de cada uma das 20 peças que acabaram por constituir os 4 volumes de ALGUM TEATRO, ou seja: a grande maioria das obras dramáticas do período 1966-2007.
Não duvido que, tanto para o estudioso do nosso teatro como para o simples leitor de ficção dramática, alguma vantagem haverá na leitura deste conjunto de peças pela ordem em que foram redigidas; o que certamente permite o mais exato conhecimento duma evolução de escrita, a todos os níveis. Tratando-se, porém, de uma coleção de obras tão diversificadas, é quase certo que alguns irão mais facilmente pela sugestão do título e não por outros motivos (tal como acontece com os volumes de contos de um mesmo autor). De qualquer modo, aí vai o que me parece suficientemente motivador duma leitura integral de cada obra, duma respetiva eventual encenação ou tradução. (E informações complementares poderão ainda anteceder o texto dramático.)
Quatro são as obras que integram o vol. I: As Histórias de Hakim, A Paixão segundo João Mateus, As Cadeiras Celestes e O Rosto Levantado.
AS HISTÓRIAS DE HAKIM (1966). – Peça em 2 partes, que trata essencialmente da posição do artista perante o poder. (Neste caso um poder totalitário, o da mítica Bagdade, em recuados tempos.)
Hakim, o protagonista, é um jovem contador de histórias que, com o seu talento verbal, denuncia corrupções e injustiças quotidianas. A partir de O Tapete Voador (uma quase-história, na medida de ser um episódio em que ele próprio participou), desenvolvem-se os verdadeiros contos, constituintes da posterior ficção dramática: A Arca de Sândalo, Os Ladrões-Bailarinos e O Avarento Maruf. Temos então uma ação diversa mas interligada, com suas personagens básicas sujeitas a várias metamorfoses, devidas a um devaneio imaginativo, a uma inesperada subida na escala social ou até a secretas vivências alternativas. De qualquer modo, tratando-se duma peça de teatro, era imprescindível que o “narrativo” se tornasse de imediato “vivido”.
Quanto ao fascinante ambiente exótico do mundo árabe (que voltei a recriar em Viagem a Damasco), resulta de um estudo específico, continuado, logo a partir de 1965, ano em que, integrado num grupo de estagiários da Universidade do Teatro das Nações, visitei longamente o reino de Marrocos. Em Marráquexe, na celebérrima praça Djemaa el Fna, deparou-se-me o primeiro contador de histórias. E logo comecei a idealizar o irreverente Hakim, tão solidário com os menos afortunados.
Um breve apontamento de diálogo entre o Grão-Vizir e Hakim (o ilustre, inesperado visitante, é um tal Idriss, que começou por ser mirabolante vendedor de tapetes “mágicos” e agora, secretamente, alterna as funções governativas com o noturno passatempo de salteador):
GRÃO–VIZIR – Toma cuidado, Hakim. Chegaram já a meus ouvidos notícias de novas histórias que inventaste, nas quais o venerável Califa e eu próprio somos tratados com certa irreverência, com certo desrespeito. HAKIM – Também o povo de Bagdade merece respeito, e continuamente é desrespeitado pelos que o governam. GRÃO-VIZIR – Hakim: Será necessário lembrar-te que disponho de plenos poderes para encerrar-te na mais escura masmorra ou até para cortar-te a cabeça, de pronto? Esqueces, acaso, a sorte de vários companheiros teus na perigosa arte de efabular fantasias? HAKIM – A esses, venerável Grão-Vizir, rendo a mais comovida homenagem. Pelo seu exemplo. E pela dedicação que demonstraram à causa desta cidade oprimida. Espero não vir a ser menos corajoso e assumir integralmente as responsabilidades da minha profissão. Até ao extremo limite de todas as minhas forças.
A PAIXÃO SEGUNDO JOÃO MATEUS (1972 e 1978). – Uma Paixão de Cristo, naturalmente. E por que razão “segundo” João Mateus? Porque foi esse o melhor nome que encontrei para um presumível poeta popular da minha ilha Terceira, desses que felizmente se encontram hiperativos, digladiando-se amistosamente nas cantorias ao desafio ou escrevendo cada ano os novos textos (em verso, pois com certeza) que hão-de constituir o suporte das danças dramáticas que animam o período carnavalesco. (Chegam a ser cerca de 50 os grupos organizados para o efeito.) E porque nem sempre são jocosos os temas escolhidos (por vezes até extraídos da História de Portugal, das Sagradas Escrituras ou dalgum tratado dos santos), pareceu-me o assunto bíblico particularmente interessante para uma recriação literária da linguagem popular terceirense.
Temos então uma Paixão que não é segundo São João nem segundo São Mateus, mas segundo João Mateus, alguém bastante mais próximo da nossa existência quotidiana. O qual, passando por “verdadeiro autor do texto dramático”, assume também as funções de apresentador e condutor de todos os passos da representação, em que se inserem intermédios cómicos, como o do remorso de Herodes na presença de Salomé, o do farisaico comportamento de Simão de Betânia, o da introdução à entrevista do 1.º Pontífice com Pôncio Pilatos, além das várias cenas em que intervém a soldadesca romana. Mas não é esse o tom predominante, como se poderá imaginar.
Quando, após o aprisionamento de Jesus, Pedro procura acamaradar com os servos de Caifás, junto à fogueira, passa uma criada da casa, que o interpela:
CRIADA – […] Que veijo eu? ‘Stou ciente Que és abeilha do crotiço. Todas levárum sumiço, Só tu ficas pra semente?! PEDRO – Nã sei que dizes, mulher. CRIADA – Digo que és da cumpanhia De Jasus. PEDRO – Mãs que heresia! Nem no conheço, siquer! CRIADA – Se te veijo amurganhado, Co’a cabeça no imbigo, É que te sentes im p’rigo, Pois num és do nosso lado. 2.º SERVO – Por mim, nã me preocupo Se te quer’s acautelar. Mãs olha: o tê linguajar Mostra bem qu’és desse grupo De Jasus. PEDRO – Que teimosia! Morto seija (i)eu, – que azar! – S’eu oivi alomear Tal criatuira, algum dia!
AS CADEIRAS CELESTES (1975). – Peça em 2 partes. Também escrita em verso de redondilha maior (sete sílabas métricas), mas desta vez não rimado, o que voltará a ser o caso de D. João no Jardim das Delícias e de Magalona, Princesa de Nápoles. (Porém. Ao contrario de A Paixão, estas outras peças, preservando o ritmo que lhes é indissociável, apresentam-se graficamente como se em prosa tivessem sido elaboradas.) Quanto ao assunto da peça agora em questão: trata-se de uma parábola dramática com referência a tempos de perplexidade, politicamente empenhada, aproveitando a liberdade de expressão que o 25 de Abril em boa hora nos concedeu. O protagonista é um Job contemporâneo, cujo desenfreado enriquecimento não desmerece da complacência divina.
A esse propósito, seja-me permitido salientar uma constatação duma personagem relevante:
O DIABO – Dizia eu que o progresso de Job, que patrocinei sob o olhar do Bom Deus – divina cumplicidade –, não parou mais de aumentar. Já nem eu próprio consigo suspender a sua marcha de gigante em liberdade. E, se não fosse quem sou, já teria desistido. Teria subido ao Céu. Então, à vista do Eterno, lançar-me-ia por terra. (Cai de joelhos.) “Senhor, Senhor, tem piedade. Falhei. E só por orgulho provoquei a autoridade do teu saber infinito. Job, teu fiel servidor, não renegou o teu nome. Não disse uma só palavra contra Ti. És vencedor!” (Fingindo ingenuidade.) Mas não sei por que razão um homem de carne e osso como Job, tão mergulhado na miserável riqueza, não teria, uma só vez, lançado ao rosto de Deus uma qualquer maldição. Uma só. Penso e não vejo a menor explicação.
O ROSTO LEVANTADO (1977-1978) – Peça em 2 partes, cuja ação decorre no Alentejo, por volta de 1970.
Ao regressar do serviço militar, Geraldo, que, apesar de jovem, exercera as funções de feitor do latifundiário José Redondo, apercebe-se da impossibilidade de, comodamente, reinserir-se naquele meio (que aliás lhe tinha sido tão favorável). A experiência da guerra colonial e o convívio com alguns camaradas minimamente politizados haviam-lhe aberto os olhos para uma tão flagrante desigualdade social.
GERALDO – […] E o que eu posso acrescentar, neste momento, não é muito favorável ao bom andamento deste convívio, oportunidade rara nesta casa. E especialmente para os menos afortunados, que ao longo do ano comem pão com toucinho, e pouco mais, é muito conveniente que este jantar, tão bem servido (mais nesta mesa do que naquela), continue por mais algum tempo. […] E também ficarei por mal-educado se gozar as delícias desta refeição, com sorrisinhos de falso contentamento, e disser depois, com toda a franqueza, o que penso de tudo isto. E por mal-educado ficarei ainda se me levantar e sair, antes da tempestade, dizendo apenas: adeus.[…] SECUNDINA – Alguma coisa se passou, com certeza. Alguma coisa aconteceu. GERALDO – Aconteceu que uma peça se modificou neste mecanismo. Três anos fora dele, e agora já não serve.
E cinco são as obras que constituem o vol. II: Viagem a Damasco, Do Desencanto à Revolta, Os Deserdados da Pátria, Florânia ou A Perfeita Felicidade e D. João no Jardim das Delícias.
VIAGEM A DAMASCO (1980). – Comédia em 2 partes. A exemplo das que proliferam no teatro clássico, poderia chamar-se “de enganos”. Na verdade (na mentira, melhor dizendo), o jovem Ismail, em vésperas de viagem para Damasco, onde deverá (deveria) estudar medicina, procura criar situações em que o tio Mansur, seu tutor, propenso à rédea curta financeira, se alargue mais e mais no subsídio que terá de conceder-lhe. Até que, voltando-se o feitiço contra o feiticeiro… Enfim, inúmeras oportunidades para os intérpretes principais evidenciarem um continuado virtuosismo.
Ora aí temos o velho Mansur, que tendo passado a noite fora de casa, bebericando, na sequência duma armadilha engendrada por Ismail, regressa finalmente e justifica a Aixa, sua mulher, aquela ausência inesperada, com uma fantasia mais edificante:
MANSUR – Quando saí de casa de Mestre Zarak – era já noite fechada – depara-se-me, ao dobrar da esquina, uma cena deveras lamentável. Um jovem, por sinal bem apessoado e muito bem vestido, com evidentes manifestações de embriaguez. Caminhava assim (imita o bêbedo): cai-não-cai, vacilante e… claudicante… por ali fora. Apossou-se de mim um verdadeiro dó, uma grande mágoa. É tão triste ver um homem embriagado! É coisa muito feia num homem já feito. Num rapaz novo, terrivelmente aviltante e deprimente. Ao que chegou a juventude de hoje! Tantos desvios! Tanta libertinagem! No meu tempo não era assim. AIXA – Já sabemos. E depois? MANSUR – Eis senão quando o rapaz se precipita para uma pobre mulher que ali estava, descuidosa, varrendo a testada. E é que ia mesmo, decididamente, para ela, sabe-se lá com que intenções. Mais por instinto que por outra razão, lancei um grito. Assim: Aaaai! AIXA – Credo, homem! Olha se te ouvem os vizinhos. Que hão-de eles pensar? MANSUR – Tenho que ilustrar bem os acontecimentos. Foi assim: Aaai!
DO DESENCANTO À REVOLTA (1982). – Peça em 2 partes, antecedente a uma outra escrita seis anos mais tarde – Os Deserdados da Pátria, igualmente em 2 partes, com ela formando um díptico pelo que a representação integral poderá realizar-se numa sessão apenas ou alternando a primeira peça com a segunda, em dias sucessivos. Admitamos portanto: obras de certo modo autónomas, mesmo assim interdependentes quanto basta e até complementares (locais de ação e protagonistas comuns, entrechos estreitamente relacionados, fazem, de qualquer maneira, um todo coerente).
Ficção teatral em que procurei recordar como Portugal, no curto espaço de seis anos (1540-1546, âmbito temporal das duas peças), mudou radicalmente o seu rumo e, de país progressista, se foi tornando num apertado e sinistro cantinho da Europa. Na verdade, o “desencanto” a que se refere o título desta primeira obra é a do protagonista Bernardim de Montemor, o qual, concluídos os seus altos estudos em Paris, deveria ocupar as funções de reitor dum novo colégio de Lisboa; porém, ao serem conhecidas as suas relações de amizade com Damião de Góis e outras figuras suspeitas de luteranismo, logo se vê preterido; e a “revolta”, igualmente mencionada, é a que o leva a fazer-se passar por um simples escrevinhador de cartas e petições, acessível a qualquer pessoa, em pleno Terreiro do Paço. Recurso algo escandaloso, naturalmente.
BERNARDIM – […] E atenderei ainda aquela boa mulher, que deseja autorização para vender caranguejos no bairro de Alfama! E aquele Frei Bonifácio de Coisa-e-Tal, que tenciona vender relíquias de santos mártires! É só um momento, minhas senhoras e meus senhores! Pacientai-vos, peço-vos! Todos serão atendidos! E com a maior eficácia! Porque o “escrevente” que aqui vedes é pessoa de altos estudos! Bem vos poderia mostrar os respetivos diplomas e atestados! Não o faço porque mo impede a minha natural modéstia! Mas poderia rechear as vossas cartas, petições e requerimentos de belas sentenças latinas, extraídas dos melhores autores! Mas é só um momento! Um de cada vez, por favor! Atenderei a todos, minhas senhoras e meus senhores! E quanto pagareis vós pelo meu trabalho? Pois não pagareis 30 reais, nem 10, nem 5! Porque todo o meu trabalho será absolutamente gratuito! Porque há-de ser esta a minha maneira de mostrar a todos o regozijo que tenho pelo meu feliz regresso a este país!, que adoro! – logo depois de Deus, bem o posso afirmar! E digo isto para tranquilizar algumas orelhas mais compridas que porventura me escutem!
OS DESERDADOS DA PÁTRIA (1988). – Peça em 2 partes, aqui referida fora do normal encadeamento cronológico, por se tratar da já mencionada continuação de Do Desencanto à Revolta.
Após uma prolongada e um tanto misteriosa ausência, regressam a Antuérpia Bernardim de Montemor e D. Catarina, sua mulher. Andaram ambos envolvidos em episódicos atos de pirataria, nomeadamente contra um galeão traficante de escravos da Guiné, logo devolvidos às suas origens.
De tão aventurosa e terrível experiência dá testemunho a própria protagonista:
D. CATARINA – […] Ficaram alguns dos nossos marinheiros, devidamente armados, em vários pontos estratégicos: no convés, nos castelos da proa e da popa. Outros desceram connosco. Fomos encontrar, na penúltima coberta, 223 escravos; e, na última, 195. Amontoados quase, e acorrentados a umas argolas de ferro, em toda a volta, e também ao centro, ao redor dos mastros. Uma promiscuidade! Um cheiro nauseabundo! Naquela escuridão, alguns pareciam caídos num torpor mortal, outros, desesperados, mordiam-se. Bernardim e eu, que nunca tínhamos visto semelhante espetáculo – que só Dante Alighieri saberia descrever –, mal podíamos articular palavra, embargados que estávamos pelas lágrimas. (Profundamente comovida, volta-se para o fundo e, muito discreta, enxuga os olhos, com um lencinho que retira da manga,) Em mim – mais do que por ser mulher –, o choque e a comoção não poderiam deixar de ser maiores. É que, amigos meus – e isto confesso-vos de coração aberto –, tinha pleno conhecimento de que o tráfico de escravos era um dos negócios mais rendosos de D. Fradique Alvarenga, e sempre me calei, e ali vivi, naquela casa, até ao meu casamento, rodeada de tantos aparatos e ostentações, em boa parte provenientes deste execrável comércio de inocentes vidas humanas.Não menos relevante, porém, é o caso do criptojudeu Samuel de Oliveira, proprietário duma loja de quadros em Lisboa, cuja filha (Ester) casou com Jerónimo Garcia, companheiro de estudos e amigo íntimo de Bernardim. A circunstância de Samuel de Oliveira possuir na sua “galeria” o painel de Hieronymus Bosch As Tentações de Santo Antão, acerbamente cobiçado pelo jesuíta Simão Rodrigues para o colégio que dirige (com o nome do santo), acelera a perdição do judeu (denunciado à Inquisição e por ela torturado), bem como o exílio de Ester e Jerónimo, com a proteção de Bernardim de Montemor.
FLORÂNIA ou A PERFEITA FELICIDADE (1983). – Peça em 2 partes. Segunda experiência de escrita correspondendo ao convite expresso duma companhia de teatro profissional. No caso concreto: o Teatro Experimental do Porto. (Anteriormente registara-se o caso de A Ilha do Rei Sono, para a Companhia de Françoise Lepeuve, Paris, 1965.)
Desta vez, por sugestão minha, a direção do TEP decidiu proceder a um inquérito junto do público quanto a possíveis interesses temáticos, tendo em vista a criação do próximo espetáculo. Receando que viessem a propor-me histórias ou argumentos delineados, avancei, muito abstratamente, com o alinhamento de umas dezenas de pistas, tais como: família, trabalho, política, religião, saúde, poluição, guerra, morte, sexualidade… Isto, por ordem alfabética, para afastar a ideia de preferência pessoal. E acontece que a votação se revelou maioritariamente concordante em meia dúzia de assuntos. Pelo que já não me agradaria a hipótese mais simples: optar pelo mais votado. Seria eu capaz de engendrar uma ficção dramática, uma história coerente, com princípio, meio e fim, em que viessem inserir-se alguns temas preferidos do público?
E aí temos o caso de Plautínio, um ator de certo modo desiludido com a sua carreira, o qual, fazendo uma pausa no trabalho artístico, se reúne com pessoas que, por motivos diversos, se consideram infelizes. E, não conseguindo escapar à “teatralidade”, organiza com elas jogos dramáticos, exorcizantes, que tratam em comum os problemas e os medos de cada qual: Da Fragilidade Humana, A Colher de Pau, O Benemérito, A Grande Surpresa, Riso Amargo, O Invento e Ida e Volta.
Resta dizer que aceitei estagiar no Porto durante dois meses. Reservava as manhãs à elaboração do texto, que a pouco e pouco, com um mínimo de segurança, já o encenador Moncho Rodriguez poderia ir trabalhando cenicamente com os atores, todas as tardes. Eu participava nestes ensaios com grande assiduidade e isso era um estímulo inestimável para a minha criatividade dramatúrgica. (Permito-me ainda esclarecer que, de qualquer modo, o texto de Florânia é produto integral da minha imaginação, sem recurso a quaisquer improvisos verbais ou de movimento dos comediantes.)
A terminar esta nota, consideremos ainda um breve apontamento de diálogo do ator profissional com Carménio, esse que (tudo assim o indica) poderia vir a ser uma espécie de discípulo dileto:
PLAUTÍNIO – A minha ideia, Carménio, não foi propriamente a de pôr em prática uma série de psicodramas, que, por si só, nos pudessem ajudar a sair destes labirintos da civilização. Não pretendo ir tão longe. O recurso ao psicodrama exige aprofundados conhecimentos científicos, que eu, naturalmente, não possuo. O jogo dramático, como eu lhe chamo, já é mais acessível. CARMÉNIO – E menos perigoso. PLAUTÍNIO – O jogo dramático – tal como se pôde ver esta tarde – não oferece qualquer perigo. CARMÉNIO – E o seu objetivo principal é… PLAUTÍNIO – Fazer chegar os participantes a um estado de desinibição e autoconfiança que lhes permita, em futuros encontros, apreender facilmente as minhas teorias. Teorias essas que, conforme disse esta manhã, são a matéria de um desenvolvido ensaio que preparo neste momento: O Livro da Perfeita Felicidade.
D. JOÃO NO JARDIM DAS DELÍCIAS (1985). – Tragicomédia em 2 partes. O mito literário de Don Juan transferido para o tempo de Filipe II de Espanha (I de Portugal), numa ação que decorre entre 1581 e 1588, em Lisboa, Sintra, Sevilha, Palermo, Bérgamo, Veneza e Roma. Múltiplas são, naturalmente, as figuras femininas seduzidas pelo aventureiro; a principal, a jovem D. Leonor, filha do ex-embaixador de Espanha em Portugal, D. Gonçalo de Ulloa. Por sua vez, D. João é filho de D. Diogo Tenório, atual embaixador de Espanha em Roma. E é de certo modo por via diplomática que chegam a conhecer-se os Ulloas e os Tenórios, com a consequente e trágica relação amorosa de D. João e de D. Leonor. Permito-me referir algumas curiosidades. Além de Filipe II, outra figura histórica: o papa Gregório XIII (atarefado com a reforma do calendário romano).
Em Lisboa, D. João assiste a uma representação teatral sobre a lenda medieval de Tristão, cuja vivência amorosa se opõe radicalmente à do aventureiro sevilhano; se este é o inveterado usufruidor de tantos corações femininos… para Tristão, lutando com tantas adversidades, não poderá haver outra mulher além de Isolda.
Lá mais para o fim de D. João no Jardim das Delícias, retornado o sedutor ao palácio familiar de Sevilha, transformadas umas antigas cocheiras numa espécie de “museu D. João”, é Mascarino (fiel servidor e companheiro do homenageado) quem dá testemunho das tão gloriosas façanhas do seu amo.
Mas recordemos ainda como D. João, fazendo-se passar por frade pregador, surge no convento em que se refugiou D. Leonor. Para a seduzir, naturalmente.
JOÃO – […] Atentai que não é bem definida – antes vaga, impercetível – a fronteira que separa o chamado “amor divino” do chamado “amor profano”. Assim também o sentiram e expressaram os artistas, os grandes, grandes artistas, na pintura, na escultura. – Dizei-me vós, Leonor, muito francamente: Quando contemplais o belo corpo de um jovem mártir – mau grado os prejuízos causados pelas setas, por exemplo –, não sentis uma emoção, que é muitas vezes diversa do fervor religioso? Não vos sentis transportada a um domínio bastante mais terra-a-terra? (Um breve silêncio, D. Leonor parece ligeiramente inquieta e perturbada.) JOÃO – Ora, não sois desprovida de imaginação. Sereis? Conseguis fantasiar que aquele corpo se anima, respira, se movimenta, e, milagrosamente curado dos ultrajes do martírio (estendendo-lhe os braços), vos estende os braços… LEONOR – Sim. Confesso que algumas vezes isso aconteceu. (Estende-lhe as mãos, lentamente, mas logo se arrepende, e retira-as.) Perdão. Sei que mereço o castigo de Deus. Perdoai-me vós, que doravante sereis meu confessor.
Também o vol. III reúne cinco peças. A saber: Magalona, Princesa de Nápoles; O Marido Ausente, As Viagens de Henrique Lusitano, A Donzela das Cinzas e Uma Nuvem sobre a Cama.
MAGALONA, PRINCESA DE NÁPOLES (1986) – Peça em 2 partes, cuja ação decorre nos princípios do século XIV, principalmente na Provença, em Nápoles e no Egito, tendo como ponto de partida um simples folheto desses que (creio eu) ainda se vendem nas feiras. Tratando-se de um escrito muito esquemático e rudimentar (que mesmo assim merece referência de Cervantes no D. Quixote), tratei de enriquecer o entrecho o mais possível, de modo a estabelecer uma sólida construção dramática em que o amor do jovem Pedro (filho dos condes da Provença) e Magalona atingissem momentos de exaltação, alternados com desencontros devidos a naufrágios, muito shakespearianamente. (Que pena, aliás, não ter surgido esta história na oficina do genial dramaturgo e poeta inglês!)
No conto original – tal como circula na literatura de cordel – apenas os protagonistas dispõem de nome próprio; pelo que foi necessário inventar todos os antropónimos de personagens apenas referidas pelas funções, como os condes da Provença e os reis de Nápoles, agora Maurício / Iolanda e Brialdo / Marilda, respetivamente. Tal como foi indispensável criar uma galeria de outras figuras, de matizadas personalidades e temperamentos: Ludgero, Ginevra, Astruk (um mago), Gerbino, Landolfo, Otman (sultão do Egito). Mustansir e Natan, por exemplo.
E eis como, na minha versão teatral, termina a história de Pedro e Magalona: com um decisivo recurso ao imaginário maravilhoso:
MAGALONA – Por Deus! De qualquer modo, acredito: praticando o amor ao próximo, mos retemperámos, Pedro. PEDRO – E quanto mais reforçado não resulta o nosso amor! (Abraça-a efusivamente.) (Neste entrementes, Astruk, o mago, deixara de contemplar o desconcerto das águas marinhas para apreciar a harmonia dos amantes. E agora, distanciando-se da janela, avança alguns passos vagarosos. E tal é a sua imponência que nele se fixam todos os olhares circunstantes.) ASTRUK – Altezas Reais; amigos: Como sabeis, a Magia, arte suprema e ciência soberana, pode ser utilizada em desígnios os mais diversos. E assim, porque está nas minhas mãos servir-me dos seus poderes, quero agora decidir-me pela justiça. Mudança radical de meus propósitos, favorecendo o amor profundamente sincero, imperecível, de Pedro e Magalona. Eis o prémio que, muito do coração, lhes concedo. (Solenemente, toma a varinha mágica, que traz suspensa à cintura, e aponta-a para a parede do fundo.) Alxi zanor, granimáti vel kaládi! (Com um ruído semelhante ao do trovão, fende-se a parede em duas partes, pela abertura natural que é a janela, começando cada uma a deslizar para seu lado, até ficar bem visível o impressionante espetáculo do mar enfurecido. Os relâmpagos atravessam o noturno azul do céu. Todos se mostram simultaneamente amedrontados e maravilhados com tão estranho prodígio.) ASTRUK (impondo ainda a varinha de condão à fúria dos elementos) – Moisés, Salomão, Merlim, sede propícios! Deixai-me dominar a tempestade! Ventos, sossegai! Vós, ondas, tranquilizai-vos! Que apenas reste soprando uma brisa, suavíssima e constante, necessária ao mantimento das velas! (Serenado o mar, logo no céu se definem a Lua e miríades de estrelas. Longínquo, desperta um cantar harmonioso, de sereias talvez.) ASTRUK – Oh, preparemo-nos para o embarque! A viagem, considero-a auspiciosa! Assim há de ser, também, este casamento em Nápoles!
O MARIDO AUSENTE (1988). – Comédia assincrónica num longo ato, para espetáculo completo, cujas sequências se interpõem a séculos e séculos de distância. Particularmente sensível à liberdade política dos povos e à identidade cultural dos mesmos, ocorreu-me refletir sobre o caso particular da Grécia, por diversas vezes submetida ao domínio estrangeiro. Pelo que imaginei uma Penélope, conservadora do Museu Nacional de Atenas, cujo marido, armador (Ulisses Lascaris de seu nome), desaparecera durante a ocupação nazi. Ora esta Penélope, inventiva e fantasiosa a mais não poder, imagina-se sucessivamente requestada por três pretendentes: Solimão, o Magnífico (sultão da Turquia, século XVI), Ivan (um príncipe russo, século XVIII) e Otão I (filho do rei Luís da Baviera, século XIX, que um mesmo ator preferencialmente interpreta.
Um exemplo do modo algo sobranceiro e achincalhante com que Penélope recebe os seus pretendentes:
OTÃO (mete a mão no bolso da farda, de onde extrai um pequeno estojo) – E agora, para que as minhas palavras te sejam propícias, aqui tens este anel, que comprei na mais rica joalharia de Munique. (Abre o estojozinho e toma o anel.) PENÉLOPE – Safiras e ametistas. Não sei se me deixo tentar. Ora, experimentemos. (Estende-lhe a mão delicada. E o jovem monarca, tomando-lha com cerimoniosa deferência, impõe-lhe o anel.) Ah, mas fica-me demasiado largo. Larguíssimo. Bem se vê que estás habituado a oferecer anéis às bem acervejadas matronas da Baviera! OTÃO – Desculpa, por favor. É quase imperdoável. Mas tem o seu remédio. Trocá-lo-ei por outro mais maneirinho, quando for a Munique. PENÉLOPE – Deixa lá. Não te preocupes. Não é coisa de importância. Largo ou apertado… um suborno… é um suborno. Usá-lo-ei assim mesmo, como simples metáfora de como é inconveniente aos Gregos a idiossincrasia germânica. Sabes, vou usá-lo com uma pequena cunha, um calçozinho de madeira. A madeira de cipreste é a mais indicada, julgo eu.
E por ser esta a primeira das 5 peças que escrevi a convite do Teatro de Portalegre, não quero deixar de assinalar esse facto, para além da ficha antecedente ao próprio texto.
AS VIAGENS DE HENRIQUE LUSITANO (1989). – Narrativa dramática em 2 partes, cuja ação decorre em Portugal (Algarve e Lisboa) e a bordo de caravelas e naus em viagem no Atlântico e no Índico, entre o primeiro quartel do século XV e o primeiro quartel do século XVI. Peça originariamente destinada a um teatro de marionetas. Na atual versão para atores subsistem alguns artifícios cénicos que atestam essa proveniência: a movimentação de caravelas e naus no plano anterior do proscénio, por exemplo, sujeitas a brandos ventos favoráveis ou a discordantes tempestades; ou ainda a toalha da mesa em que o Infante D. Henrique almoça com Gil Eanes, transformada em carta geográfica da costa ocidental africana, tal como o reposteiro do palácio de D. João II (com o seu mapa muito mais definido a oriente que a ocidente); num e noutro caso, sinais de obsessão pelos empreendimentos marítimos. Por vezes poderá o espetador surpreender-se com um tom desenvolto – provocadoramente galhofeiro – no tratamento de tais assuntos; mas a verdade é que isso está mesmo na tradição do teatro de marionetas, pelo menos desde o século XVIII. Ora pareceu-me que, numa versão para atores, essa caraterística continuaria perfeitamente aceitável. (E o recurso ao anacronismo seria outro elemento a considerar.)
Mas, sem que nos alonguemos demasiado, vejamos ainda quem é a personagem a que se refere o título da obra.
O Infante D. Henrique, acabado de regressar da conquista de Ceuta, passeia com Frei Amadeu na praia do Restelo e preocupa-se com a desventura dos pagãos daquelas terras de África, quando, detrás dum pedregulho, se manifesta o vagido dum recém-nascido. Que há-de chamar-se Henrique Lusitano, assumindo o príncipe, desde logo, o apadrinhamento. E surge então a Sibila Eurisménia, que profetiza “grandes feitos e glórias portuguesas, mormente nas partes de África, da Ásia e das Américas”. Mais profetiza Eurisménia: que aquele menino (que virá a ser escudeiro de D. Henrique) “terá assegurado o privilégio duma longuíssima juventude… por muitas décadas e décadas”. E assim, feliz testemunha de tão grandiosos cometimentos (narrador quase cronista em algumas passagens do espetáculo), acompanhará Gil Eanes em duas viagens, assistirá às entrevistas de Colombo com o nosso D. João II, acompanhará Bartolomeu Dias até ao cabo das Tormentas e, anos depois, seguirá na frota de Vasco da Gama, até à Índia. E ainda, com Pedro Álvares Cabral, até ao Brasil.
Passando em branco as múltiplas peripécias vividas e relatadas pela picaresca figura do protagonista, direi que finalmente lhe reaparece a Sibila Eurisménia, sua protetora. A qual, argumentando que a partir dali… “descobertas, poucas; algumas conquistas, empreendimentos missionários, aventuras, comércios, naufrágios…”, encomenda a vida de Henrique Lusitano a Cronos, Senhor do Tempo, pelo que o infeliz aventureiro ver-se-á privado da longuíssima juventude de que vinha usufruindo. (Ultrapassara, entretanto, os 86 anos…)
A DONZELA DAS CINZAS (1990). – Comédia em 11 quadros ou sequências, cuja ação decorre num país indeterminado, nos meados do século XVIII. Trata-se duma versão do conto tradicional Cinderela – ou Gata-Borralheira –, comum a vários países europeus (que a ópera de Rossini e o desenho animado de Walt Disney poderosamente ajudaram a divulgar).
Quando o encenador Manuel Guerra, então colaborador do Centro Cultural de Évora, me desafiou a escrever uma peça para o núcleo de teatro infanto-juvenil daquela instituição, inspirada num conto tradicional, rememorei os meus tempos primordiais de leitor e não me foi difícil optar por Cinderela. Isto porque o mítico elemento da recompensa triunfadora, contrapondo-se à injustiça repressiva, me interessava particularmente.
Estudei o assunto (de que encontrei inesperados vestígios na Antiguidade Oriental) e escrevi a peça. Muito bem recebida pelo Manuel Guerra, verificou-se depois não haver elenco disponível para as 7 personagens da comédia (que só viria a ser estreada nove anos depois, pelo Teatro Passagem de Nível).
Silena é o nome da protagonista, muito embora a madrasta (Obsidiana) e suas filhas (Ofídia e Santalina) persistam em chamar-lhe Cinérea e, mais ironicamente, Donzela das Cinzas. Renunciei à figura da fada-madrinha; preferi que o espírito benfazejo que lhe corresponde fosse a revificação de Verona (a falecida mãe da rapariga) no simples vulto duma aveleira. (“Quantas vezes não falaram os poetas das aveleiras, que tão prematuramente florescem nos meses sombrios e cujos frutos longamente se fazem esperar! Ora aí está um símbolo de paciência e persistência.”)
Uma das cenas mais marcantes será talvez aquela em que Obsidiana, Ofídia e Santalina, como verdadeiras sacerdotizas do Mal, obrigam Silena a trocar o vestido habitual por outro, cinzento e desgracioso, mais adequado às inúmeras tarefas que lhe vão ser impostas. Segue-se o rasurar do nome de Silena escrito numa ardósia, logo substituído pelo de Cinérea. E por ser a cinza o atributo do novo nome, a madrasta e cada uma das filhas lhe marcam a fronte com esse produto, em três traços horizontais.
UMA NUVEM SOBRE A CAMA (1990). – Comédia erótica em 2 partes, cuja ação decorre em Tebas, há muitos séculos. Zeus omnipotente, na mira de seduzir a virtuosa Alcmena, mulher de Anfitrião, general dos Tebanos, proporciona uma guerra entre este e os Teléboas. Afastando-se ele para o efeito, com o seu escudeiro Sósia, logo o Zeus supremo e Hermes (seu filho) se disfarçam de Anfitrião e de Sósia, respetivamente. Pelo que o primeiro seduz Alcmena e o segundo, Calipsandra; o que desencadeia uma série de peripécias demenciais entre as inocentes Alcmena e Calipsandra, em confronto com as verdadeiras e as falsas figuras de Anfitrião e de Sósia.
Lá mais para o fim da comédia, dirige-se Hermes (mensageiro dos deuses, não esqueçamos) a Alcmena: “Tenho o grato prazer de anunciar-te que, chegado o devido tempo, darás à luz um filho divino.” “Um filho divino?!”, espanta-se a virtuosa. E exclama Anfitrião: “Pelo pirilau de Zeus!” (É a sua imprecação predileta. Quanto ao glorioso nascituro… trata-se de Hércules, nem mais nem menos.)
Integram o vol. IV as seis restantes peças: Arlequim nas Ruínas de Lisboa, Os Doze Mandamentos, Fortunato e TV Glória, O Café Centauro, Salomé ou A Cabeça do Profeta e Para além do Caso Maddie.
ARLEQUIM NAS RUÍNAS DE LISBOA (1992). – Comédia “de maus costumes”, em 8 quadros ou sequências, para um espetáculo completo. Trata-se de uma ficção com fundo histórico nacional. Modesta homenagem à arte do Ator (na figura do protagonista Alceu Beringela, tocado pelo fascínio de uma das mais fulgurantes personagens da commedia dell’arte e do Teatro em geral), permite uma breve análise do viver setecentista. De qualquer modo, entenda-se que as ruínas a que se refere o título não são apenas as resultantes do terramoto de 1755; também as da própria sociedade portuguesa, em muitos aspetos degradada, depois das forçadas magnificências de D. João V.
Tanto quanto me permitia o espaço-tempo de representação, ousei aflorar os temas da irresistível ascensão do futuro marquês de Pombal; a sua luta contra os opositores, principalmente os jesuítas; os desregramentos da vida eclesiástica e conventual; o fanatismo religioso; a corrupção da justiça; o atentado contra D. José I; o oportunismo e a ganância em momento de catástrofe; a difusão da literatura de cordel; a posição do artista perante o mecenato e os poderes instituídos, por exemplo.
Seja-me permitido um breve comentário de autor: Senti um prazer invulgar na escrita desta comédia, mas recordo com frequência a cena em que Arlequim, disfarçado de freira, pretende convencer a madrasta (Libertina Vitalícia) a entrar para o convento de Odivelas, deixando-lhe assim disponível a casa de Alfama, a que ele julga ter pleno direito.
ARLEQUIM (alternando o ditado com deliciadas dentadas na azevia) – “Sr. Alceu Arlequim.” – É esse o nome, não é? MARÍLIA – Alceu é nome de batismo, creio eu. Arlequim… é acrescento italiano, segundo parece. ARLEQUIM – Portanto: “Sr. Alceu Arlequim…” LIBERTINA – Eu nunca o tratei por senhor… ARLEQUIM – Pois passará a dar-lhe esse tratamento, que assim mandam as regras da boa educação. – Excelência.” (E, suando as estopinhas com o esforço intelectual, Libertina Vitalícia vai escrevendo a carta, por vezes descai-lhe a língua da boca, como é próprio de tais pessoas em tais circunstâncias.) ARLEQUIM – “Aproveitando a suprema graça que me é concedida pelo Céu e pelo sacrossanto Convento de Odivelas, por intercessão da venerável Madre Maria Verónica dos Santos Sudários…” MARÍLIA – “…de Turim, Besançon, Carcassona e Xabregas…” ARLEQUIM – “…refugio-me jubilosamente na vida religiosa. – Declaro renunciar aos meus direitos sobre esta casa…”
OS DOZE MANDAMENTOS (1993). – Comédia espiritual em 2 partes. Além do mais, uma sátira à proliferação das seitas religiosas, fenómeno habitualmente devido a dissidências entre sequazes recalcitrantes, desejosos de protagonismo. E é assim que o funcionário público Benvindo Salvador, com prosápias de dialogar com Deus, tendo militado na Igreja da Reconciliação Universal (por sua vez um ramo da Igreja dos Escolhidos do Senhor), acaba por fundar a Igreja Mosaica dos Doze Mandamentos. Isto no pressuposto de que uma das tábuas da lei, com os divinos preceitos religiosos transmitidos a Moisés, se encontrava quebrada na parte inferior, em que estariam gravados os dois mandamentos complementares: “11.º Não drogarás nem contaminarás o teu corpo; 12.º Não poluirás a Terra.”
E é nesta sequência de invencionices que o profeta Moisés (no suporte físico de Fulgêncio, um amigo brincalhão, é certo) se digna aparecer a Benvindo Salvador. E este, numa longueira noite de vigília e conhaque, escuta avidamente a mensagem do bíblico barbilongo:
FULGÊNCIO – Mas, já que assim o desejas, ficarás a saber que o Fenícios (rapinantes de primeira apanha, como se sabe) apoderaram-se, há muitos séculos, das sobreditas e sacrossantas relíquias, a saber: o cestinho de junco da minha primeira infância e um fragmento de uma das tábuas da lei. Levaram-nas, nos seus barcos primitivos, para além do Mediterrâneo, Atlântico acima, por essa costa da Europa. Chegados que foram ao estuário do Tejo, subiram-no até umas terras que hoje são chamada do Ribatejo. E, numa gruta ribeirinha, muito próxima do Tramagal e cuja localização exata te revelarei oportunamente, jazem, escondidas e intactas, as venerandas relíquias mosaicas. E agora… adeus. Até ao meu regresso.Mais tarde, Heloísa Perpétua, mulher de Fulgêncio, poetisa doméstica hiperlaureada em jogos florais brasileiros, referir-se-á ao irmão Veríssimo, o conceituado “fabricante de antiguidades, tão apreciadas por Europas e Américas”, que tão habilmente se dedicou a “manufaturar o cestinho de junco e o fragmento da tábua da lei”.
FORTUNATO E TV GLÓRIA (1995). – Comédia telenovelesca e alucinante em 2 partes, cuja ação decorre em Lisboa, na última década do século XX. Fortunato Galisteu, nascido numa remota aldeia da serra da Estrela, veio aos 11 anos para a capital, trabalhar na mercearia de um conterrâneo, estabelecimento que depois se tornou armazém de secos e molhados. Vindo a casar com Laura, filha única do dito conterrâneo, herdou-lhe o progressivo negócio. Pelo que agora, passadas pouco mais de duas décadas, é proprietário duma rede de supermercados. (“Posso dizer o nome?”, como perguntavam certos participantes de famigerados concursos televisivos. “Supermercados Fortunato.” Ora aí está.)
Com o casal vivem dois filhos vintaneiros (Marco e Sandra), ainda estudantes; além de Glória (mãe de Fortunato), a criada Clara, a cozinheira Belmira e o motorista Dionísio.
O empresário, não sendo a princípio particularmente afeto a programas de televisão, deixa-se contagiar pelo entusiasmo de alguns familiares nesse domínio (com alarmante destaque para a mulher e a mãe, inveteradas consumidoras de telenovelas, concursos, reality shows); e tendo também em conta o extraordinário poder publicitário daquele meio de comunicação, ambiciona já a criação da sua própria estação de TV. (Nome previsto: TV Glória, em homenagem à mãe.) De modo que se torna um hábito, para Fortunato, seus parentes e amigos, entreterem-se improvisando “programas” a exemplo dos mais populares, em que atuam com grande à-vontade. Até que a ficção e a realidade se confrontam.
Uma pequena amostra de diálogo:
LAURA – Meia-verdade, Fortunato, é quanto te posso dizer. FORTUNATO – Pois venha ela. Com meia-verdade… (exibe os punhos cerrados) quem sabe se não chegarei à verdade toda?! (Mais calmo.) Atraiçoaste-me? LAURA – Nunca te atraiçoei. Nunca! Respeitei a tua ausência, nesse tempo de guerra de Angola, e sempre. Sempre, antes e depois, onde quer que estivesses, onde quer que eu estivesse. FORTUNATO (também enxugando o suor da testa) – Então a que vem esse despropósito de mau gosto?, o de insinuares que o “nosso” Marco… não é o “nosso” Marco? E já no fim da parte I: FORTUNATO (atabalhoando uns passos na direção de Belmira) – Mas o que foi? Que aconteceu? BELMIRA – A Clara, aquela galdéria, está fechada no quarto! Com o meu homem!
O CAFÉ CENTAURO (1996). – Trilogia dramática inicialmente concebida para a televisão, cuja ação decorre por inteiro num dos nossos vulgaríssimos cafés de província. Mantendo cada uma das peças a desejável autonomia de ação, a verdade é que no seu conjunto se completam, com personagens crescentes ou decrescentes em protagonismo.
Intitulam-se as histórias: Cavalheiro de Nobres Sentimentos, As Invenções do Demónio e As Suaves Luvas de Londres. Trata a primeira de inesperadas subtilezas da astúcia amorosa (a de um professor primário supostamente entendido em grafologia): a segunda, da irreprimível obsessão colecionista, com tragicómico desfecho; a terceira é uma desenfastiada sátira ao tão arreigado espírito do maledicência nacional, que leva à insistente suposição de ser forçosamente superior tudo o que no estrangeiro se produz.
É da segunda história, As Invenções do Demónio, a seguinte amostra de diálogo entre Natércia e uma colega de trabalho:
NATÉRCIA (reparando-lhe na malinha das borboletas) – Ah, mas essa não conheço ainda… IVONE – Pois não. (Tira-a do ombro e põe-na sobre a mesa.) Comprei-a ontem à tarde, a um cigano. NETÉRCIA – Colecionadora inveterada. IVONE – Só de malinhas e carteiras de senhora. Sempre foram a minha paixão. NATÉRCIA (apreciando o colorido das borboletas) – Já tens uma para cada dia da semana, aposto! IVONE – Qual quê! Não tardo a ter uma para cada dia do mês! NATÉRCIA – Incrível! Já me fazes lembrar aquelas mulheres de certos ditadores e aquelas atrizes de Hollywood, que possuem 789 pares de sapatos… 987 pares de meias… IVONE – Ena. Que exagero. – Mas olha, vem mesmo a propósito. (Abre a malinha e tira um pequeno recorte de celofane, com o desenho duma carteira de senhora e respetivo texto informativo. Passa-lho para as mãos.) NATÉRCIA (recebendo-o) – Isto o que é? Ah, é das massas Viriato. (Lendo:) “Para receber a nossa engraçadíssima carteira que ri (sempre que é aberta) basta colecionar 100 pontos impressos nas nossas embalagens e enviá-los para o Apartado n.º …” não sei quantos, taratatá, etc. e tal. – E já viste a data limite? IVONE – Quase dois meses. NATÉRCIA – E quem é que, em menos de dois meses, vai consumir 100 embalagens de macarrão…? Só um restaurante italiano de Lisboa… ou o refeitório da Guarda Nacional Republicana!
SALOMÉ ou A CABEÇA DO PROFETA (2000). – Comédia em 8 quadros ou sequências, para um espetaculo completo. A ação decorre no início da era de Cristo, na fortaleza-palácio de Maqueronte.
A sensualíssima Salomé, jovem de invulgar fantasia e sapiência, destaca-se sobremaneira no quadro familiar, onde aliás o seu padrasto Herodes Antipas (tetrarca da Galileia, rei puramente conjetural) tem como passatempo predileto colecionar fivelas de calçado de históricos personagens (supõe-se). Pelo que não foi difícil a Herodíades (fisicamente uma virago, representada por um ator bem encorpado) tornar-se a efetiva governante, com funções complementares de falcoeira-mor.
E, como seria de esperar, chega a ser imperativo, a certo passo, o assédio de Salomé a João Batista, o profeta encarcerado:
SALOMÉ – Outra lembrança me ocorre! – Não me digas que também desaprovas estoutra sugestão! (Pausa.) No contraforte maior da fortaleza abre-se uma gruta profunda, fresca, de cuja abobada natural caem, em vários pontos, mananciais de água pura. Arranjarei maneira de ires até lá, ainda esta tarde, João Batista. E então poderás lavar-te, à vontade. E eu, desnudando-me integralmente, poderei banhar-me também, e ajudar-te… E isto porque as férreas correntes que te atam os pulsos sempre são uma limitação, não um impedimento a outras manifestações de vital regozo (digo: regozijo). Entretanto, continuando nós nestas e noutras ocupações, quedar-se-á de molho a tua pele de cabra (ou de bode). Oxalá fosse de bode, pelo simbolismo da concupiscência…
PARA ALÉM DO CASO MADDIE (2007). – Peça em 12 quadros ou sequências, para um espetáculo completo, cuja acção decorre em Lisboa, em 2007, com retrocesso a 2003.
Estando no auge do interesse internacional o chamado “caso Maddie” (misterioso desaparecimento duma menina inglesa no Algarve), Jean-Pierre Mambrino, rapaz de ascendência luso-suíça, professor de Informática e leitor habitual de romances policiais, descobre naquele assunto mediático todos os ingredientes de que poderia resultar um romance deveras apaixonante. E deixa-se tentar neste domínio. Estabelecera ele, entretanto, amistosas relações com uma jovem jornalista, Anabela Escobar (que de manhã atende escassos clientes numa loja de livros usados), pelo que o incipiente escritor lhe vai dando conta do andamento desse projeto literário:
JEAN-PIERRE – É então que o aprazível Dinarco se oferece para cuidar da criança por um instante, enquanto os pais iriam dar umas braçadas nas águas reluzentes. (Pausa.) Enfim… (Consulta o relógio.) Abreviando a narrativa, gostaria ainda de ler-te os últimos parágrafos deste 3.º capítulo. (Procura a passagem do texto no computador.) ANABELA (reaproximando-se da secretária) – Sou toda ouvidos. JEAN-PIERRE – “Elsie acordou a altas horas, em sobressalto. Não se recordava se os pais haviam estado ali junto dela, para o beijinho das boas-noites. Chamou pela mãe. E quem lhe apareceu, vinda do quarto contíguo, foi a Ginny, colaboradora da creche e guardadora de crianças ao domicílio, que procurou sossegá-la, dizendo-lhe que a mamã e o papá não tardariam em chegar. E que fizesse o possível por adormecer. Mas Elsie quis apreciar, uma vez mais, a linda oferta que lhe fizera o Sr. Dinarco. // Ginny foi buscá-la à grande gaveta da cómoda e, reacercando-se do pequeno leito, abriu a colorida caixa de cartão. Ela lá estava, a galinha, acocorinhada no cesto de vime, com os seus três pintainhos. – ‘Sabes que estas figurinhas deliciosas são moldadas com aparas de figos passados e miolo de amêndoa? Isto quer dizer que, minha querida Elsie, quando estiveres cansada de as ver… poderás comê-las, a pouco e pouco.’ // ‘Mas eu não quero comê-las, Ginny. Quero levá-las, quando voltar para Londres. Quero mostrá-las à minha avó Sally e aos meus amiguinhos do infantário.’ // Então, devido ao carinhoso tratamento da baby-sitter, voltou a deslizar no sono. E numa daquelas grutas – a mais bonita! –, assim como quem sai duma sombra, viu animar-se o recorte de Peter Pan.” – Assim termina este capítulo. (Pausa.) Que te parece, Anabela? (Tecla uma e outra vez no computador, iniciando a retirada.) ANABELA – Pois não me parece mal, não, senhor. Mantenho a melhor expetativa. […] JEAN~PIERRE – Esta noite, cumprindo a agenda que lhe é imposta pelo “romancista” J.-P. Mambrino, o capitão Dinarco (que assim o chamam) irá visitar Patrick O’Brien, um amigo irlandês que vive quase sempre num iate atracado à marina de Lagos. O pretexto principal é mostrar-lhe as 6 ou 7 fotografias em que conseguiu captar os nascentes encantos de Elsie McLaren.Entretanto, numa carta ao diretor da revista em que Anabela faz o seu tirocínio, Mafalda Rodrigues, mãe de Ondina (criança desaparecida em Cascais, há quatro anos), queixa-se de que, em contraste ecandaloso com o presente “caso Maddie”, os meios de comunicação social quase nenhuma atenção lhe dispensaram. E mal saberia a jornalista que, ao aceitar entrevistá-la, iria proporcionar à policia judiciária uma preciosa pista de investigação…
* * *
Ora muito bem. Os dados estão lançados. Que é como quem diz: Propõe o autor as suas peças aos eventuais leitores e encenadores. Àqueles e a estes (conhecidas as intenções do dramaturgo) compete dizer em que medida tais intenções ou objetivos têm sido concretizados: contribuir para o engrandecimento do repertório nacional (dos elencos mais amplos aos mais restritos), com obras de temática, tempos e lugares de ação os mais diversificados, cuja qualidade literária permanentemente se mostre solidária com a imprescindível virtualidade cénica.
Lisboa, junho de 2009.
NORBERTO ÁVILA
* Obra entretanto publicada: A Paixão segundo João Mateus (Romance Quase de Cordel), Instituto Açoriano de Cultura (Angra do Heroísmo); Lisboa, 2011.