NORBERTO ÁVILA

 

NEVOEIRO

 

 (Conto / 1977)

 

Aquilo era um lugarzinho excomungado. (O cu do mundo, com perdão da palavra.) Uma mancheia de casas de pouca figura, casualmente semeadas entre vinhas e figueiredos e grossas pedras brutas roladas da serra, em tempos que só Deus sabe. E, para mais, num recesso da costa da ilha, altíssima naquele ponto, em que se despenhava uma ribeira ruidosa, de águas perenes. De modo que, de uma tal garganta estrangulada, apenas se descobria uma nesga de mar e um pouco mais de céu, se porventura o nevoeiro não decidisse baixar àquela desolação.

Tal era o dia em que o António Sabugo, (um naco de pão de milho no bolso para a viagem), se prontificou a ir à vila, chamar o Dr. Prazentino, mais vulgarmente conhecido pelo Dr. Peixeiro, pelos muitos interesses que tinha em traineiras e fábricas de conserva. Três horas de mau andar, que o cavalório era retardão e apreciador de quantas espécies vegetais bordejavam o caminho, – melhor dizendo: um atalho alcantilado e áspero, serpenteando por ali acima.

Bem se importavam os senhores da Governança que um homem nascesse e morresse naquele buraco, no esquecimento do mundo. Para enviar-lhe os bilhetinhos das contribuições, então sim, já se lhe lembravam da porta, onde não passava a sombra do mínimo conforto. Houvesse ali um telefone (e quantas vezes o tinham pedido e repedido!) e já se escusavam tão penosas jornadas em dias tão reles, em busca de médico ou de padre que viesse salvar corpo ou alma, se não ambas as coisas.

Passante a igrejinha de São Salvador (que o velho pároco visitava uma vez por ano, para  rezar missa e esvaziar a caixa das esmolas), eram baforadas de bruma espessa, que entonteciam cavalo e cavaleiro. E foi assim até ao alto da serra, e assim foi por todo o caminho, até casa do Dr. Prazentino, no meio da vila.

Era moradia vasta e aperaltada, com varanda corrida de lado a lado. O pesado portão, entreaberto, deixava ver o saguão e a escada de basalto que conduzia ao andar superior.

O doutor já teria saído de vale de lençóis?

Sabugo puxou do bolso do colete o cebolão que o avô lhe trouxera da América. Já lá iam as dez. Muito boas horas para acordar quem quer que fosse, mais ainda um patifório daquela espécie.

Estercava o cavalo, abundantemente, no ladrilho do médico; subia o homenzinho ao andar superior.

Umas pancadinhas tímidas na porta.

Uma voz feminina: “Quem é?”

“É o António Sabugo.”

A grossa chave de ferro rodou na fechadura enorme, conventual.

Despenteada ainda, apareceu a criada. (Desconhecida, esta. Nenhuma parava naquela casa. Dizia-se que o doutor, solteirão inveterado, era atiradiço.)

“Bum dia, sinhóra.”

“Bum dia.”

“O sinhor dòtor ‘stá im casa?”

“O sinhor dòtor? Nã le sei dezer. Pra qu’iera?”

“Era pra i ver um doente, que está munto malzinho.”

“Pois o sinhor dòtor disse-me que tincionava ir às Velas, logo de manhinzinha. Nã sei se já abalou.”

“Ah, sinhóra, pl’amor Dês! Nã me diga uma coisa dessas! Pode qu’inda nã tenha saído.”

“Vou ver. Ele às vezes pranta-se todo o dia nas Velas. Como tem aquele negócio das traineiras…”

“Credo, sinhóra. E um hóme há-de morrer ao abandono, sim ninguém que l’acuda?”

A rapariga sumiu-se, por instantes, no interior da casa.

A vida, por ali, estava assim. Dois médicos apenas numa ilha com 65 quilómetros de ponta a ponta, onde a maioria dos 16 mil habitantes sonhava com califórnias de abundância.

Lá fora o cavalo relinchava, encharcado em nevoeiro.

Quando a criada, que batera à porta do quarto do doutor, obteve autorização para entrar encontrou-o de roupão de seda, lendo o Diário Insular. Pouco antes tinha ido levar-lhe o pequeno almoço: torradas com manteiga, queijo, doce de nêspera e leite com cacau.

“Sinhor Dòtor: ‘stá lá fora um hóme que o vem chumar, pra um doente.”

“Não estou. Não estou. Já saí.” Foi a resposta.

“Já calculava. E por isso le fui dezendo que nã sabia se o sinhor Dótor já tinha abalado pr’às Velas.” Fez uma pequena pausa. “Mãs pode ser coisa aqui perto. Sempre era um descárrego de cunsciência.”

“Não, não. Nem perguntes onde é, porque não vale a pena. Já saí. Só regresso à noite, e muito tarde.

A criada voltou à porta, mostrando-se pesarosa.

“Era o que eu pinsava. Já lá vai.”

“Valha-me Dês! Valha-me Dês! Ai o mê rico vezinho, que morre como um cão. Pior que um cão; que muntos deles, mal lhes dê um arrepio de frio, já têm dòtor vetrinário à cabiceira, a medir-lhes a febre, a dar-lhe uma injeção. Sorte malvada!”

E foi saindo. A criada, essa, uma vez mais prometeu a si mesma que se ia embora daquela casa, onde era obrigada a mentir constantemente, para salvaguarda dos interesses do médico.

Já no caminho do regresso, poucas centenas de metros andados, António Sabugo começou a pensar se, não podendo levar o doutor, não deveria ao menos levar o padre, para o que desse e viesse. Não que o doente lhe mostrasse o mínimo desejo de tal visita. Que ele até, a dizer a verdade, há anos andava de candeias às avessas com o padre, por este lhe ter infruído a filha mais velha a seguir a vida religiosa.

Manobrou o cavalo em sentido contrário, decidido a passar pela igreja paroquial.

O velho padre Simão, como sempre, depois da missa, circulava pela sacristia, inventando mil e um afazeres, a que só ele sabia dar o valor. Fiel à sua batina, ninguém se gabaria de o ver de calças, nem mesmo que o próprio Papa o viesse obrigar a apresentar-se em trajos tão pouco decentes aos seus paroquianos.

Estava junto à porta quando o homem entrou, desbarretando-se. Adiantou para ele a mão direita, para o beija-mão, que não dispensava. O camponês não gostava daquelas lambedelas, como ele dizia, mas não era conveniente mostrar-se discordante. E lá cumpriu o preceito.

“Bum dia, sinhor Padre Simão. Dês ‘teja.”

“Deus venha, António Sabugo.”

“Entes de más, quero aqui fazer uma ismola, se o sinhor padre dá lecença.”

“Homem, pois não! Quantas quiseres.”

E passaram ambos à capela-mor. Sabugo tirou duma saquinha de pano, onde sempre trazia o dinheiro, uma nota de 20 escudos, esfarrapadinha e sebenta. Parecia hesitar, olhando alternadamente os muitos santos e santas dos diversos altares.

“Nã sei a qual deles há-de ser.”

“A qualquer deles, meu filho, que todos eles têm igual merecimento. Olha ali Santa Filomena… Que linda, no seu vestido cor-de-rosa.”

“Dizem agora que Santa Filomena nunca existiu…”

“Nunca existiu, um cornicho! (Que Deus me perdoe!) Esses padres modernos é que dizem essas torresmadas. São uns hereges. Aqui na igreja, pelo menos, o maior número de graças é de Santa Filomena.”

E, na verdade, não sendo o momento para tais discussões, o homenzinho avançou para o altar da Santa, lançou-lhe os 20 escudos na caixa das esmolas e, depois de benzer-se, voltou para junto do padre. Cumprida a devoção, pareceu-lhe a ocasião indicada para o ataque: “Pois ê vinha aqui (e o sinhor Padre há-de ‘sculpar o estrevimento) pedir-le que vinhesse mais eu, se quer cuntar mais uma alma nos resistos do Céu.”

O pároco escovava uma estola dourada, tentando retirar-lhe uns pingos de cera.

“Mas está alguém a morrer?” perguntou, sem levantar os olhos.

“O mê vezinho Alfuredo Moreia. ‘Tá munto atrapalhado. Dês seija servido de nã o chumar tã cedo, mãs nã me parece.”

“Isso é no cabo do mundo, António.”

O camponês encolheu os ombros. E disse: “O que é que se há-de fazer? Seija tudo pra desconto dos nossos pecados. A gente nasce ali naqueles buracos. Ninguém é sinhor do sê destino.”

“Pois é,” respondeu o padre. “Qualquer dia lembram-se de ir morar para o ilhéu do Topo. E em dias de maresia e tempestade hão-de querer que eu os vá ouvir de confissão e levar-lhes os santos óleos. A pé, sobre as vagas, como Nosso Senhor Jesus Cristo!”

“Dês seija loivado, ‘stamos im terra firme.”

“Três horas de caminho, António Sabugo.” E escovava a estola energicamente.

“Tenho o cavalo ali fora, sinhor Padre. Daqui lá é um salto.”

“Um salto pela rocha abaixo. Com este nevoeiro…”

“Navoeiro? Mãs ist’ é só aqui, ò redol da freguesia. Cando chigarmos ali a riba, òs pastos, já o céu é desempecido, e o sol quente que cunsola.”

Padre Simão não acreditava muito naquele otimismo. Do clima de São Jorge, no outono, também ele conhecia alguma coisa. Mas, tendo em consideração as generosas intenções do forasteiro, sempre se decidiu a empreender a jornada: “Vai preparando o animal, enquanto eu vou a casa, num instante, comer uma dentada.”

“A bestinha ‘stá preparada, só à sua ispera.”

“Põe-lhe a minha sela, homem de Deus. Já sabes que não uso outra. Está aí nesse vão, atrás desse reposteiro.”

Na verdade, o pároco mandara cortar os pés de trás a uma velha cadeira de braços, que foi devidamente adaptada a uma sela vulgar. Isto porque a inseparável e eterna batina o não deixaria escanchar-se na alimária como qualquer cavaleiro.

Meia hora depois, e não mais, iniciava-se a viagem. À frente, António Sabugo, de samarra ao ombro, roendo o naco de pão de milho que trouxera. E logo o padre Simão, razoavelmente instalado, levando sobre os joelhos a caixa em que sempre transportava os sagrados apetrechos. A cabeça, baixa; os braços, descontraídos; os pés, bem assentes na tabuinha talhada e pregada para o efeito. E a sonolência, que irremediavelmente o tomava depois das refeições, não se fazia esperar.

O cavalo, esse, talvez como protesto contra a penosa viagem a que o obrigavam a preencher, decidira pôr de parte as regras do bom comportamento. E de quando em quando traquejava, forte e feio, fazendo corar de vexame António Sabugo.

“Tem vergonha, padaço de mariola,” dizia-lhe o dono ao ouvido. E o pároco, embora mais desperto do que parecia, dissimulava não dar por nada.

Já tinham andado obra de meia légua além da freguesia (“Qual céu desempecido, qual quê!”) passou por eles, a reduzida velocidade, um Volkswagen cor de salmão, faróis acesos.

“Ai o grandecíssimo bandalho!” exclamou o camponês.

“O que foi? O que foi?” perguntou o padre, sobressaltado.

“Pois aquele não é o carro do Dr. Prazentino?”

“Já não vejo bem. Se é cor de salmão, não pode haver dúvida, que outro não conheço em toda a ilha.”

“Grandecíssimo bandalho!” repetia o pobre homem. “Mau fogo te pegue, exquemungado!”

“Credo! Abrenúncio!” escandalizou-se o padre, com tão desenfreada linguagem. “Estou mesmo a ver o que aconteceu. Disseram-te, lá em casa do doutor, que ele já tinha saído…”

“Que tinha ido pràs Velas.”

“É o costume.”

“O Sr. Padre Simão, cando vai lá à cidade da Terceira, a esses retiros esp’rituais, é que bem podia dar uma palavrinha por nós. Para eles siquer sabêrim qu’ist’aqui tamém é terra de gente.”

“Isso já é política, António. Deus me livre de tal coisa. Cada macaco no seu galho. A minha política é a de curar as almas. E já me basta.”

“Mãs olhe que a alma, se nã tiver um corpinho onde poisar, tamém nã le serve de nada andar por este mundo…”

E o nevoeiro adensava-se cada vez mais.

***

Para encurtar a narrativa, que já leva bom espaço e suficiente pormenor, direi que o vizinho Alfredo Moreia se recusou a receber o padre Simão. E para que a jornada não parecesse de todo inútil, António Sabugo arranjou maneira de o sacerdote ouvir de confissão uma pobre velha, encamada há três ou quatro anos.

A meio da tarde, sem que Deus Nosso Senhor fosse servido de dispersar aquela bruma pastosa e renitente, regressava o pároco à sua querida freguesia, às suas talhas douradas, aos seus paramentos. Como era de obrigação, foi levá-lo António Sabugo, que lhe disse, ao deixá-lo em frente da igreja: “Tanho ‘tado cá a pensar que o machinho nã vai aguantar outra viage além das três que já hoije le coiberam, por mal dos sês pecados. Vou mãs é ficar aqui esta noite, e ao abrir da manhãezinha antão me ponho a caminho.

“É o que fazes melhor. Não me ofereço para te dar hospedagem porque a Ernestina já tem a cama preparada para o Sr. Padre Borba, que, mais coisa menos coisa, deve estar por aí a aparecer, para as novenas da Senhora da Conceição.

“Agora cá! Nem era meu intento inc’modar o Sr. Padre Simão. Ê tanho aí uns parentes,  na Canada da Atafona, e é lá que eu hei-de ficar.”

E assim foi. Aos primeiros bocejos da madrugada lá ia o nosso homem de regresso à sua terreola. Dizer-lhes que o tempo de névoa continuava é dizer-lhes apenas a verdade. Não levantar-se um vento benfazejo que varresse para bem longe aquelas vagas de vapor pegajoso e envolvente!

Aconteceu que, já de volta abaixo, deixando ir o cavalo a passo descansado (que os precipícios abriam-se-lhes à ilharga, de quando em quando), António Sabugo avistou, subindo penosamente a encosta, aquilo que logo lhe pareceu o funeral do vizinho Alfredo Moreia. Manobrou o animal para um desvio do caminho e, já de cabeça descoberta, ficou aguardando a passagem do grupo: uma dúzia de homens, levando quatro deles, aos ombros, um caixão de madeira mal aparelhada. Impressionante era, na verdade, ver definir-se a pouco e pouco, na bruma que subia do mar, aquele cortejo desolador e misterioso.

“Já lá vai, à conta de Nosso Senhor,” pensou o camponês, angustiado. “Dês le reserve um bum lugarinho.” E, falar por falar (que em tais momentos sempre é necessário dizer qualquer coisa), dirigiu-se aos conterrâneos com estas palavras: “P’lo que veijo, ficarmos sem o noss’ Alfuredo.”

E logo um dos que seguiam o caixão, o Manuel da Venda: “Esse ‘tá melhorzinho e já s’alevantou. Quem morreu foi o João Berimbau.”

António Sabugo sentiu o coração apertar-se-lhe. Mas ainda conseguiu exclamar: “Virge Santíssima! Quando?”

“Esta noite passada,” foi a resposta.

O grupo subia, perdendo-se naquela brancura espessa, enquanto Sabugo, pouco seguro na sela, continuava a descer o atalho pedregoso e escorregadio.

“Munto grande é o poder de Nosso Sinhor,” dizia para consigo o pobre homem, destruído com a notícia que acabava de o atingir. “Pois o Alfuredo Moreia, qu’ inda onte ‘stava às portas da morte, já hoije s’ergueu! Dês loivado! E o desinfeliz do João Berimbau que par’cia ter saúde pra dar e vinder, já foi chumado à Divina Presença. É bem verdade que nã samos nada nesta vida.”

Este João Berimbau, homem avantajado e de passo decidido, trazia e levava, desde há anos, a pouco volumosa mala do correio, sob a chuva do inverno e o sol do verão. Sempre bem disposto e galhofeiro, recado que se lhe pedisse, podia-se estar certo que não ficaria por cumprir. Ele e António Sabugo eram do mesmo ano. Vestiram juntos a farda de soldado e, quando ambos tiveram filhos, convidaram-se mutuamente para padrinhos. Por isso o camponês não resistira à comoção e soluçava. Agora, mal chegasse a casa, vestiria a roupinha de ver a Deus, e ainda iria apanhar o enterro no alto da serra, muito a tempo de acompanhar o compadre à última morada.

Vinha-lhe à ideia o acanhamento de ambos (o despropósito da lembrança!) ao baterem pela primeira vez à porta da Maria Gaitada, dona de casa de raparigas na Rua dos Canos Verdes. E o riso miudinho das desavergonhadas, ao aperceberem-se de que eram cândidos candidatos à iniciação carnal. Isto, há 40 anos, na cidade de Angra.

Agora estava morto, aquele homem bom e alegre como um passarinho.

Sem desmontar do cavalo, Sabugo apanhou uma folha de inhame, juntou-lhe as bordas ao alto e chegou-a a uma fonte natural, para apagar a sede.

Lembrava-se também daquela tarde em que, por muita sorte e ajuda de Deus, não pereceram no mar do Norte da ilha, ao regressarem da pesca. Tantas recordações, quase todas felizes! E quantas vezes se entreajudaram, em dias de vindima ou de matança de porco!

Agora, uns metros abaixo, junto a um bardo de hortênsias, afigurava-se-lhe o vulto do compadre João Berimbau, carregando a mala do correio. E com efeito (que tentação do Inferno era aquela?!) o vulto adiantava-se, passo e passo, rompendo o nevoeiro que parecia eternizar-se.

António Sabugo, entontecido, receava continuar a viagem, não fosse dar-lhe alguma vertigem, que à beira de tais abismos e despenhadeiros são passaporte para o outro mundo. Ardiam-lhe os olhos. Por isso levava a mão em pala sobre eles, como se isso evitasse o efeito daquele humidade corrosiva. Mas, a bem pensar, dali até casa já não ia muito, e era preciso preparar-se para o enterro.

E foi descendo, governando o cavalo o melhor que sabia. Mas, na verdade, (Jesus Senhor!) o corpanzil do João Berimbau, em toda a sua figura, crescia para o cavaleiro estarrecido. O saco às costas, o boné americano, o braço livre compassando o andar, talqualmente era visto há um ror de anos, costa acima, costa abaixo.

Num calafrio mortal, António Sabugo coseu-se quanto pôde a um maciço de hortênsias, contrário à ribanceira, e aguardou que o outro cruzasse com ele.

E logo foi a voz familiar e amiga: “Ist’ é c’ma quem navega num mar d’ algodão, cumpadre António. Mãs se cair vou ò fundo!”

“Sai-te, diabo!” esconjurou Sabugo. “Inda há pouco ias no caixão e já vens tentar a minh’ alma!”

Sem  entender aquela resposta tão despropositada, João Berimbau só admitiu que o compadre tivesse enlouquecido. Suspendeu a marcha e perguntou-lhe, inquieto: “Hóme, mãs que é isso?”

Porém, estimulando a cavalgadura com os calcanhares, já ele se afastava quanto podia, arriscando-se na descida íngreme e pedregosa. Por um instante ainda o outro ficou a vê-lo distanciar-se, até que resolveu seguir-lhe no encalço. E chamava: “Ó António Sabugo! Ó António! Espera aí!” E ouviu-se um grito.

Só quando chegou ao seu lugarejo, já quase a entrar em casa, é que Sabugo se convenceu de que havia sido enganado pelo Manuel da Venda. Na verdade, sempre quem havia morrido na véspera tinha sido o vizinho Alfredo Moreia. Mas o seu pobre coração não parava de emocionar-se naquele dia. É que, à boquinha da noite, ia ele dar a ceia ao cavalo, viu passar o verdadeiro corpo de João Berimbau, levado por uns homens, numa padiola. Caíra da rocha ao calhau do mar, onde o encontraram uns rapazitos que andavam às lapas.

António Sabugo perdeu a fala, e dificilmente a recuperou. E ficou com aquela mágoa para sempre: não o deixarem acompanhar o cadáver deste segundo amigo de muitos anos, naquela outra manhã de nevoeiro, no dia seguinte.

NORBERTO ÁVILA

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