NORBERTO ÁVILA

 

OS DOIS IRMÃOS GÉMEOS

DE SANTA COMBA DÃO

 

 (Conto / 2013 / Inédito)

Para Victor Rui Dores

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Se me permitem, falo eu primeiro (na minha qualidade de autor) e digo assim:

É bem sabido que a associação de ideias, como fenómeno psicológico, pode desempenhar papel relevante na criatividade literária. Vamos então por aí.

Há já umas dezenas de anos, vivendo eu em Paris, tive por companheiro de estudos um moço de origem galega, natural da mui nobre e bela cidade de Ferrol, mais exatamente denominada Ferrol del Caudillo, por ali ter nascido o ainda vivíssimo e general(íssimo) Francisco Franco.

E acontece que esse meu colega, uma vez ou outra, referindo a sua proveniência, entre as tão diversas que ali se manifestavam – da Península Ibérica aos confins da Austrália e do Japão –, não ocultava um certo embaraço e algum desgosto. Pobre Bernaldo Xunqueira (que assim se chamava esse rapaz).

Pois agora, passado que foi este largo tempo, depara-se-me a oportunidade de visitar, pela primeira vez, uma simpática e acolhedora cidadezinha bem portuguesa, Santa Comba Dão, mesmo a sul da província da Beira Alta. E, nesta inesperada circunstância, ocorreu-me admitir, confesso, a hipótese de ali poder encontrar um eventual habitante fatigado de ouvir mencionar a local naturalidade de algum político de alto coturno… (Mas a seu tempo virão os pormenores…).

*

Bem pouco depois das 7 horas, naquela luminosa manhã de agosto, Durval Salvaterra fechou com 4 voltas de chave o seu apartamento, em Campolide e, atravessando a rua, logo tomou o Ford Escort azul cobalto. Como bagagem, apenas uma mala de média, direi até: de pequena dimensão, de cabedal enegrecido. Que aquela não seria ainda a verdadeira despedida de Lisboa, cidade de que muito gostava e onde vivera bem duas décadas, com muitas deslocações a diversas paragens do vasto Mundo, sem voltar, nunca que fosse, à terra natal: Santa Comba Dão, precisamente. Mas esse seria agora o seu destino. Provisório?, ou, dentro em pouco, definitivo? Logo se veria: consoante as novas impressões causadas pelas pessoas e pelos lugares, conforme decorressem as conversações com os conhecidos e familiares.

Na semana anterior, ele e mais meia dúzia de colegas haviam recebido a notícia de chofre: devido à crise galopante, o Banco Pecuniário Português decidira encerrar uma dezena de dependências em todo o País. E logo aquela em que ele trabalhava, caramba, teria de ser incluída nessa lista! Sorte malvada! Logo haveria ele de contar-se entre os infelizes “contemplados!”

Ora, os solícitos advogados de ambas as partes andavam já em diligências quanto às indemnizações previstas. E ele, rondando mesmo os 50 anos de idade e em tão periclitante situação da sua existência, mostrara-se sensível a um amável, afetuoso telefonema do irmão Duarte (esse, sim, inveterado residente em Santa Comba, com quem trocava muito esparsas conversações telefónicas, pelo Natal, além das mútuas felicitações pelo 1º de maio; não tanto por ser apenas Dia Mundial do Trabalhador, mas por ser data ademais respeitável: a de comum e idêntico aniversário. (Ora, o longo título desta narrativa assumia-se já como um lamiré de semelhante condição familiar.)

Precursora, porém, na gentileza e oferecimento de seus “limitados” préstimos, fora a sobrinha única e muito dileta: Liliana. Que aliás ainda na véspera voltara a telefonar, com um complemento de reconfortantes palavras. Tanto ela individualmente como os pais e o avô Hermínio, todos naquela casa estariam desejosos de fazer-lhe companhia por alguns dias, num momento que lhe era menos favorável. E muito mais fácil e prático seria deslocar-se uma pessoa só, agora tão disponível, de Lisboa a Santa Comba Dão, que, inversamente, deslocarem-se quatro pessoas (tendo cada qual os seus afazeres) de Santa Comba a Lisboa. E ela própria, Liliana, não tardou em pedir muita desculpa de não estar em casa quando ele chegasse, para festejar, logo ao almoço, aquele bem-vindo regresso do “tio pródigo” (mal comparando, claro está, apenas quanto à ausência indesejada). E que só ao fim da tarde, mais próximo do jantar, poderia comparecer, desembaraçada de urgentes compromissos profissionais. Na verdade, a jovem arquiteta estava em vias de inaugurar, por aqueles dias, um complexo de turismo  rural em Valdevide, aldeia distante umas boas léguas.

Sempre haviam sido excelentes as relações de tio e sobrinha. No entanto, é de referir que, em anos mais recentes, estudando ela Arquitetura em Lisboa, permitira-se não aceitar a oferta de alojamento que ele, de bom grado, lhe oferecia; preferira dispor de integral independência e, por sua vez, respeitar-lhe a prerrogativa de evidente aceitação amorosa por parte de duas ou três senhoras que o visitavam regularmente e, ao que parece, ali pernoitavam de quando em vez. Mas Liliana e Durval dispunham-se então a um ou outro momento de convívio, indo juntos almoçar ou jantar, saindo de carro em passeio, também a algum concerto, a um teatro ou cinema.

A paisagem, no seu constante, quase monótono deslizar, ia sendo um incentivo a semelhantes reminiscências.

E recordava-se agora o viajante Durval Salvaterra daquela oportunidade em que desafiou Liliana a uma digressão para as bandas de Peniche, com a intenção manifesta de lhe dar a conhecer os labirintos da Ex-Prisão Política em que o avô Hermínio, ainda na juventude, por ter expressado publicamente o seu apoio a uma greve de mineiros, estivera detido algum tempo. E, como não poderia deixar de ser, aproveitaram a  documentar-se sobre as penosas condições em que sobreviveu o destemido revolucionário Álvaro Cunhal, até que, de forma tão engenhosa e com evidente cumplicidade, dali se evadiu, em janeiro de 1960. Ano em que, por coincidência, Hermínio Salvaterra se matrimoniou, na igreja da Misericórdia, com Aldora Oliveirinha.

Aldora, porém, muito discreta quanto a opiniões políticas (e isto vai agora por antinomia), era senhora de bem diferentes ideias.

Ora, a Agência de Viagens Salvaterra, por Hermínio fundada e por ele mais tarde oferecida aos gémeos Duarte e Durval, ocupava todo o rés-do-chão daquele prédio da Avenida da República, residindo a família basicamente no 1º andar e dispondo ainda das amplas águas-furtadas. E Aldora, que na Agência se ocupava sobretudo da contabilidade e da correspondência, fizera questão de usufruir de um recanto muito pessoal, um pequeno escritório engendrado na parte mais soalheira dessa mansarda. Nem que o privilégio da luz natural fosse deveras determinante. Era precisamente à noite, a horas mortas, que ali se refugiava a redigir determinada correspondência mais secreta.

Diga-se então que, à revelia da marital autoridade, fazia Aldora parte do chamado Movimento Nacional Feminino. Pelo que assumia, com vivo empenho e eficácia, as suas funções de devotada e extremamente afetuosa madrinha de guerra, e despachava a sua correspondência com uns tantos soldados em serviço no Ultramar: Guiné, Angola e Moçambique. Isto, claro está, usando sempre um pseudónimo: Graciete. As cartas seguiam primeiramente para Lisboa, por intermédio de outras colegas da organização, que então, pelo devido correio oficial, as faziam chegar aos seus destinatários.

Por volta das 9 horas estacionou Durval o automóvel frente a um café em Santarém. Entrou. Tomou um galão escuro com uma sanduiche mista. Descansou um instante. Pagou a despesa. E, ao levantar-se, refeito para a jornada, retinia-lhe o telemóvel no bolso das calças. Era o irmão.

Duarte, já comodamente instalado à sua mesa de trabalho, na Agência Salvaterra, foi pronto em perguntar: “Então como é que vai correndo essa viagem? Presumo que já virás a meio caminho…”

“Não calculei distâncias nem tempos de percurso. Estou em férias. Forçadas. Fiz uma pequena pausa, em Santarém, para pequeno-almoço. E agora, sem querer escandalizar a memória materna: ‘confortado com este sacramento’ (como nós dizíamos, nesses velhos tempos), já vou a entrar no carro, para continuar a peregrinação rumo aos ‘santos lugares’ (na opinião de um tal Duarte Salvaterra)”.

“Pois também eu, sem querer ofender a memória materna, ouso perguntar: ‘E viste bem se deixaste o gás desligado?, as torneiras da água bem fechadas? Tens bem a certeza de que deste as 4 voltas à chave na porta da entrada?”

Durval gargalhou de vontade. Duarte, adelgaçando a voz abaritonada, expressou um derradeiro voto: “Que Nossa Senhora da Assunção, nossa padroeira, te acompanhe. Não carregues muito no acelerador.” E, recuperando o tom natural: “ Adeus. Já aqui tenho o primeiro cliente.”

Retomada a viagem, Durval ligou o rádio, curioso de inteirar-se do estado do País, da Europa e do Mundo. As notícias habituais e pouco tranquilizantes, onde a Crise, nas mais diversas figurações e metamorfoses, pontificava. Quanto a chamadas telefónicas, apenas mais uma em todo o resto do percurso: a do seu advogado, dando-lhe conta das últimas diligências no caso da indemnização empresarial que lhe era devida. As coisas pareciam correr a contento de ambas as partes. Tanto melhor assim.

Duarte, naturalmente interessado em manter-se ao corrente de tudo o que pudesse aparecer em matéria de novos ou menos explorados destinos, recebera por aqueles dias  atraente e sedutora documentação sobre os Açores, complementada com uma  fabulosa, maravilhosa notícia: aquele Arquipélago acabara de ser eleito “destino preferido” para 2014 pela Confederação das Agências Europeias de Viagens e Operadores Turísticos. Assim, deixara-se motivar pelo assunto e logo se empenhou em reunir textos e fotografias para um folheto e para uma exposição. Pois agora aparecia-lhe, precisamente, um casal ainda jovem, munido de um dossiê há pouco publicado por uma revista semanal. Mostravam-se ambos fascinados com a perspetiva de semelhante descobrimento. “Mas não queremos esperar um ano!, nem pensar!”, disse ela. E ele, tamborilando com os dedos o tampo da secretária: “Queremos ir ainda este verão!, já”.

Estavam os três neste entusiasmo quando Durval fez a sua entrada, transportando a bem reduzida bagagem. De pronto se ergueu Duarte, para ir ao encontro do irmão. E também se levantaram os “açorianófilos” em embrião, surpreendidos com o ímpeto, a veemência dos abraços.

“Peço imensa desculpa. Este é o meu irmão Duarte, que já não via há quase vinte anos!” E cruzaram-se as apresentações.

“Na verdade, são bastante parecidos”, comentou a jovem.

“Pois não somos simplesmente irmãos! Somos irmãos gémeos!” esclareceu Durval.

“A sério? Que privilégio de parentesco!”, exclamou o rapaz. E fixava-lhes bem os rostos, comparando-os em alternância.

Enquanto isso, permite-se o autor manifestar a sua opinião, dizendo mesmo o que tem a dizer. Num deles, em Durval, por exemplo: prolongou-se-lhe um pouco mais a fronte, com alguma queda de cabelo. Não desfazendo no irmão, digamos que Durval, o ex-bancário, tem mais um dedinho de testa.

Duarte, por sua vez, é um pouco mais encorpado na cintura. (Ora, a excelência dos enchidos tradicionais, a voluptuosa maciez dos queijos da serra, os raros aromas e sabores dos vinhos do vale do Dão…) Mas ainda sobre o fator capilar, imaginemos que, em tempos, em ambos foi de um castanho escuro; agora, em ambos, de um grisalho acelerado. De qualquer maneira, há que admitir que chegar a meio século de idade já não é garantia de bonitezas por aí além. E digamos então que, grosso modo, Durval sairia mais à banda do pai; Duarte, mais à banda da mãe.

E, chegando as coisas a este ponto, apercebendo-se logo o jovem casal de quanto era especial e raro aquele momento para os dois irmãos, nada mais natural que o rapaz – um pouco mais expedito  –  propusesse  que o assunto que tinham a tratar fosse adiado para ocasião mais propícia: talvez para o dia seguinte. Sugestão com a qual imediatamente concorda o autor, pelo que aquela segunda-feira passa a ser o Dia da Reunificação da Família Salvaterra. E assim prossegue a narrativa, sem impedimentos desnecessários.

Apressou-se Duarte a redigir, com caneta de feltro, um simples recado, que aplicou ao vidro maior da porta principal: encerramento da Agência por motivo de ordem familiar, devendo reabrir na terça-feira, à hora habitual.

Hermínio andava pela quinta, logo atrás de casa, na sua habitual visita às estufas, quando, por telemóvel, Duarte o avisou da chegada de Durval. Pelo que não tardou a comparecer na sala de estar, em que já se encontravam Duarte e a mulher, Beatriz, prestando as devidas homenagens ao recém-vindo “lisboeta”. Pois bem se poderá afirmar que, se até ali haviam sido cordiais e calorosas as manifestações de mútuo regozijo, mais prolongado e firme foi o abraço que uniu Hermínio a Durval, sem proferirem uma única palavra, num estremecimento impressionante, numa comoção de lágrimas. Só quando se apartaram ligeiramente, achou Hermínio maneira de pronunciar: “Costuma-se dizer que há males que vêm por bem. Esse teu problema com o Banco Pecuniário será mesmo um mal? Irremediável? Não me parece. De qualquer modo, Durval, um bem há-de ser certamente o teu regresso.”

Ainda sem conseguir articular palavra, o filho bem-amado limitou-se a depositar-lhe um beijo na face.

E disse Duarte: “A este respeito, meu irmão, não creio que venhas encontrar nesta casa, – que continua a ser tua, –  uma única voz discordante.”

Sentaram-se então na sala de estar, para um momento de confraternização, à volta duma bebida. E Durval aproveitou o ensejo de reapreciar algumas fotos de família. Uma delas, histórica, que sempre fazia as delícias dos visitantes: a dos irmãos gémeos Duarte e Durval, acabadinhos mesmo de nascer, com bem poucos minutos de diferença. Isto,  num precioso instantâneo de Hermínio Salvaterra, “pai babado” (como sói dizer-se). E para que melhor se apercebam os meus leitores do encanto revelado nos primeiros ápices desta dupla, desdobrada existência, farei notar que os bebés repousam de costas, lado a lado, na brancura do leito, enfaixados de pálido azul. É certo que as cabeças, a bem poucos centímetros de distância, estão voltadas em direções opostas; porém não é menos verdade que a mãozita direita de Duarte segura firmemente a mãozita esquerda de Durval.

Ora, por vezes as personagens divergem um tanto ou quanto do autor. Tenha-se em conta esta subtil variação de Hermínio Salvaterra: “A mim sempre me maravilhou que as duas mãozitas se entrelacem pelos dedos, se agarrem com a possível tenacidade, como se quisessem, antes de mais, garantir um apoio mútuo.”

E logo Duarte, voltando-se para o irmão: “Sabes que aquela fitinha dourada que me assinala o pulso (porque nasci primeiro), a mãe a guardou religiosamente?”

“Sim? Mas não será motivo para eu ter ciúmes.”

“ Pois não.”

Entretanto, Beatriz, que pouco antes se havia ausentado, numa ida à cozinha, a saber em que andamento estariam os preparativos do almoço, voltou acompanhada de Genuína, a velha e fidelíssima criada dos Salvaterras, desde o casamento de Hermínio. Não vivia com eles. Tinha a sua própria casa; e família reduzida, por falecimentos sucessivos naqueles últimos anos; dispersa alguma pelo universo da emigração.

Mal fixaram os olhos um no outro, Genuína e Durval precipitaram-se para o inevitável  abraço. E ela, distanciando-se do “seu Menino” de antigamente quanto bastasse para abranger-lhe o vulto de corpo inteiro, teve como primeiras palavras: “Que pena a sua mãezinha não ser viva!, que lhe desse umas palmadas muito bem dadas nesse rabiosque! (Sem magoar, claro está!) Pois é lá possível admitir semelhante coisa! Passar  todos estes anos – que até já perdi a conta! – sem vir visitar a parentela e os amigos que aqui ficaram!”

“Ora, minha querida Genuína,” engrolou Durval, “eu sempre fui dando notícias de quando em quando…” Depois, repousando a mão no ombro de Duarte, acrescentou: “De qualquer modo, não tinham aqui, em exposição permanente, a minha fotocópia, mais traço menos traço, mais risco menos risco?”

Então a velha criada, finalizando a galhofa, lançou um vislumbre ao relógio de pêndulo sobranceiro ao fogão de sala e atalhou: “Pois teremos tempo de conversar – para não dizer ajustar contas –, Menino Durval. Vou mas é tratar do almocinho, que agora é o mais urgente.” E desandou para a cozinha, logo seguida de Beatriz.

Prestou-se então o querido recém-chegado a uma espécie de visita guiada (digamos assim) pela ampla moradia, para inteirar-se de um ou outro benefício de estrutura e decoração. Tudo obra de Liliana, naturalmente, cuja competência técnica e artística se ia afirmando com indiscutível segurança. Assim, foram dando uma vista de olhos pelas restantes divisões: os quartos do casal Duarte-Beatriz, de Hermínio, de Liliana; também aquele em que ficaria instalado Durval, identificável pela respetiva maleta de viagem.

Por vezes, outras das numerosas fotos de família, criteriosamente emolduradas e dispersas pelas paredes de suave colorido, desencadeavam lembranças e comentários.

Subiram depois ao sótão, a recordar Aldora e o seu refúgio de tão resguardados segredos.

Dois ou três anos depois do falecimento da mulher, Hermínio achara-se mais apaziguado e disposto a vasculhar o “espólio” que ela deixara naquele seu escritório privado. E, revirando gavetas, caixas de cartão e uma pequena arca de cedro, deu-se conta da existência de múltiplas pastas de arquivo, com a mais insuspeitosa e impensável documentação. Além das centenas de rascunhos das já referidas cartas aos soldados de quem era madrinha de guerra, um grande número de mensagens desses mesmos secretos correspondentes, cujas fotografias (individuais ou em grupo) testemunhavam tão angustiosos tempos de perigo e incerteza, com uma o outra compensação de bem humorado relaxamento. E uma tal descoberta não poderia deixar de surpreender e impressionar o inconsolável viúvo e os dois gémeos.

“Pois nestes últimos tempos, Durval,” disse o irmão, “fui dedicando uns momentos mais disponíveis a desbravar, a ler toda esta documentação (que é de estarrecer e enternecer, acredita)”.

E o Hermínio Salvaterra, cujo sentimento político de pronto o levaria a discordar de semelhantes guerras ultramarinas, foi muito sincero: “É de supor que esta secreta correspondência de vossa mãe, ao longo de mais de uma dezena de anos, contribuiu para desafligir a disposição de uns tantos, talvez muitos militares…”

“E até para anular alguma resolução desesperada…”, induziu Durval.

Duarte concordava plenamente. E esclareceu: “O sistema arquivístico… não era o mais apresentável, convenhamos. Agora está tudo classificado nas suas devidas pastas, pela devida ordem cronológica.” E manuseava uma delas, com grande número de fotos coladas em folhas soltas de papel almaço. “Se alguma vez tiveres paciência para apreciar esta documentação…”

“Terei toda a paciência e todo o interesse, Duarte. Podes acreditar.” E afagou-o ligeiramente no pescoço. “Obrigado por este serviço prestado à memória da nossa querida mãe,” acrescentou, comovido.”

Faltaria ainda explicitar – agora me apercebo –  as verdadeiras causas de tal falecimento.  Mas será que um autor não terá mesmo direito a evitar essas pormenorizações menos agradáveis? Forçoso há-de ser um específico recurso às afetações necrológicas? Ora, passemos então uma esponja nessas circunstâncias.

Acabada esta volta pela moradia, – e enquanto não eram chamados para o almoço – Hermínio propôs que fossem dar uma volta pelas estufas, de horticultura e floricultura, em que ele agora passava grande parte do seu tempo. E circulavam nesta última,   apreciando uma magnífica coleção de orquídeas, de que ele ia indicando os mais diversos nomes e proveniências, quando – surpresa das surpresas! – como por encanto, ali mesmo se lhes deparou Liliana!

“Mas então…senhora Arquiteta!…” , espantou-se Durval. “Ver surgir uma flor assim maravilhosa entre outras tantas! E que não é de estufa!”

Caíram, como é natural, nos braços um do outro. E ela justificou muito bem o seu inesperado aparecimento: “Não consegui resistir à tentação de adiar uns afazeres que tinha para esta tarde em Valdevide. Achei que deveria mesmo participar no almoço de tão memorável reencontro.”

“Bravo, Liliana! Sempre me pareceu que os compromissos profissionais também têm os seus limites, “disse o avô.”

“E as relações sociais e familiares ainda pressupõem algumas primazias,” acrescentou Duarte.

Escusado será pormenorizar que à troca de palavras correspondia a permutação de beijos afetuosos.

Assim, com ligeiro atraso, bem compreensível, foi naquele dia servido o almoço em casa dos Salvaterras. E se Hermínio mantinha o seu tradicional lugar à mesa – diria mesmo lugar patriarcal – os demais sentaram-se onde calhou e muito bem lhes apeteceu.

A velha e risonha Genuína começou por servir um Caldo-verde, de macia couve-galega, a modos de preâmbulo ao prato principal: Leitão Recheado à Moda da Beira Alta. E ambas as coisas mereceram rasgados elogios por parte de Durval, necessariamente saudoso  daquela regional gastronomia. Não se julgue, porém, que a magnificência da comida empeceu o diálogo familiar. Antes pelo contrário. E a dada altura aconteceu mesmo o inevitável: enfrentar com coragem e desembaraço a nova situação social daquele parente que tão arredio lhes parecera no decurso de bem duas décadas.

“Pois tenho uma  proposta a fazer-te, Durval,” disse-lhe o irmão em dado momento, servindo-se dumas colheradas de Pudim de Requeijão. E os restantes familiares ficaram aguardando os termos desse desafio.

“Sou todo ouvidos, Duarte.” E, por sua vez, interrompendo a apreciação da preciosa sobremesa, recostou-se na cadeira ligeiramente.

E Duarte prosseguiu: “A dar-se o caso de conseguires reabituar-te a este nosso meio familiar e ao ambiente social de que dispõe Santa Comba Dão (porque a cidadezinha não ficou parada nestes últimas décadas: também evoluiu alguma coisa nos mais diversos aspetos)… pensa bem na hipótese de, com todas as facilidades da minha parte, naturalmente, readquirires a tua posição de sócio da Agência de Viagens Salvaterra.”

Durval, controlando a emoção, respondeu: “ Pois não penses que poderei ficar indiferente a tão generoso convite. Muito pelo contrário, desde já. Veremos então que passos haveremos de dar nesse sentido.”

Hermínio mostrava-se otimista com o decurso daquelas conversações. (E aqui para nós, que ninguém nos ouve: na véspera já ele tinha sugerido a Duarte esta “providencial” solução.)

“Pelo menos a casa de Lisboa, essa ninguém ma tira,” disse Duarte a dado passo. “Integralmente paga. Quanto à indemnização a receber do Banco Pecuniário Português, poderá ser uma ajuda, um remedeio, mas de modo nenhum uma garantia a longo prazo.”

“A casa de Lisboa…” disse o pai. Queres um conselho? Não te desfaças dela por enquanto. Sempre é uma garantia. E o Mundo dá muita volta. Nunca se sabe… Deixa passar algum tempo, a ver se te adaptas a viver outra vez numa pequena cidade como a nossa. Oxalá que sim!”

Mostrando-se extremamente sensibilizado com a proposta recebida, Durval não receou dizer que possuía alguns depósitos a prazo em dois bancos (sendo um deles o Pecuniário) e omitindo, como é natural, os respetivos montantes. Mas admitiu que tais depósitos, acrescidos da indemnização que lhe era devida, poderiam muito bem viabilizar o seu reposicionamento como sócio da Agência Salvaterra.

Entretanto viera Genuína servir o café e os vários licores artesanais. E Liliana, querendo muito contribuir para a resolução do problema daquele tio que muito estimava, argumentou, dirigindo-se ao pai: ”Uma vez que esta nossa região conhece agora um razoável desenvolvimento, quem sabe se não seria  prudente repor na nossa Agência a função de “guia turístico”? (Tratava-se de um lugar que ela mesma desempenhara durante alguns anos, até que os seus próprios deveres profissionais, no domínio da arquitetura, inviabilizaram semelhante prestação de serviços.)

“Tens muita razão, Liliana”, acudiu Duarte. “Justifica-se plenamente a tua sugestão. E se isso não desagradar ao tio Durval…”

“Creio que tenho ainda um razoável conhecimento do nosso concelho e mesmo de toda a província da Beira Alta,” disse Durval. “Será questão de me reatualizar num ou noutro aspeto. Documentar-me sobre o que há de novo em Santa Comba Dão e terras circunvizinhas.”

Como não poderia deixar de ser, Duarte contava muito com a ajuda do irmão em assuntos de gestão financeira. Mas uma coisa não inviabilizava a outra. Adiante.

E é chegado o momento de o autor comparar o seu fictício personagem de Durval Salvaterra com a verdadeira figura de Bernaldo Xunqueira, o jovem galego nascido em Ferrol del Caudillo, citado logo num dos primeiros parágrafos desta narrativa. E por que razão? O próprio Durval confessa:

“Não há nada que mais me chateie quando digo que sou natural de Santa Comba Dão: dispararem-me logo: ‘Ah, a terra do Salazar!”

Riram-se todos, salvante o queixoso. E Hermínio, o prudente, replicou: “Ora, Durval, quem poderá orgulhar-se de haver escolhido os próprios pais e o local do seu próprio nascimento?”

Depois, vindo à baila um muito discutível e até mesmo polémico projeto de criar em Santa Comba um museu dedicado a Salazar ou um Museu do Estado Novo, assim expressava Duarte Salvaterra a sua opinião: “Por mim, devo dizer que não acharia demasiado aberrante que Santa Comba Dão viesse a dispor duma Casa-Museu dedicada a Salazar. Quer queiramos quer não, é a terra da sua naturalidade, o local mais indicado para o efeito.”

“Nem isso a mim me incomodaria escandalosamente, acredita,” atalhou Durval. “Mas receio que, a optar-se por um Museu do Estado Novo… daí possa resultar uma manifesta consagração do salazarismo, que não tenha em conta os aspetos mais negativos e até execráveis desse regime político: Partido único no exercício do Poder, PIDE, prisões políticas, torturas, interdição de greves, censura à imprensa e a espetáculos, etc., etc..”

*

E agora dirão os meus leitores: “ Enigmática figura, essa D. Beatriz. Quase que nem reagiu ao regresso de Durval.” Responde o autor: “Ela guarda, mantém uma pequeníssima reserva em relação ao cunhado. Memórias de juventude, tempo em que Duarte e Durval eram fisicamente ainda mais parecidos, mais confundíveis. Sobre isso, porém, nem mais uma palavra.

NORBERTO ÁVILA           

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