NORBERTO ÁVILA
O LASTIMOSO CASO DE VALENTINO E PASSARETA
(Conto / 2006 / Inédito)
Para Ralph Roger Glöcker
Insólita, desabitual, rebentou a notícia. Caso absolutamente nunca visto até então na pacata vila de Fervença. A campa de Filomeno Cardoso, falecido há pouco mais de dois meses, fora objecto de profanação e vandalismo. O rebordo da fina placa de mármore branco de Estremoz, quebrado em vários pontos; arrancada do suporte oblíquo a inscrição que assegurava a “eterna saudade de sua Mulher e de seu Filho”; feitos em cacos os quatro vasos de Alcobaça que, solidamente cimentados no enquadramento de granito, ao rés da terra, nos quatro ângulos se perfilavam. Os amores-perfeitos, aliás, tal como os goivos e as prímulas, jaziam por ali, à mistura com punhados de terra preta. Mais lamentável ainda: a imagem fotográfica do defunto, ovalóide e habilmente matizada de tons sépia, sofrera rudes golpes de utensílio contundente, todos eles mortais.
(Convém dizer que, embora aquele espaço permanecesse fechado durante a noite, o muro das traseiras era de altura insuficiente, muito fácil de transpor.)
A alguém haveria de deparar-se aquele inesperado e terrível espectáculo logo pela manhã de segunda-feira. Acontece que coube a pouca sorte a uma pobre mulher septuagenária, Jacinta Cortelha de seu nome. Benzeu-se e rebenzeu-se. E desandou, açodada, direita à casa da viúva, para avisá-la do sinistro acontecimento, que ela, dado ser ainda muito cedo, por certo ignorava. Tocou à campainha, que suscitou um zumbido miudinho, lá dentro. E clamou, bem alto, pela senhora Gonçalina. Nenhuma resposta. Mas, a verdade é que estavam fechadas as portadas das janelas. E ela era tão matinal! Deu então volta à moradia, para espreitar pelo lado do jardim. Pois até a cancela de ferro estava fechada, à chave. E também as portadas das janelas daquele lado, imitando as outras, não davam sinais de vivalma. “Só se ela já regressou à Alemanha,” pensou.
Retomando o carreiro que a levava à rua principal, eis que lhe aparece, num quintal contíguo, uma mulher que catava umas ervitas num canteiro de frésias.
“Lindas flores!” disse a Cortelha.
“Posso oferecer-lhe uma manchinha…”
“Não, obrigada. Também as lá tenho, junto à porta. E gosto muito. P’la cor e p’lo perfume.” Depois, não querendo perder mais tempo: “Por acaso não sabe da srª Gonçalina?”
“Olhe que não a tenho visto. Até porque estive de cama. Só hoje, sentindo-me um bocadinho melhor, é que me abalancei a pôr os pés no chão. Mas é bem possível que ela já tenha voltado para Frankfurt. Se assim é… também é estranho que ela não se tenha despedido, como é seu hábito. Ou chamou e eu não atendi, por não ouvir, ou lhe constou que eu andava adoentada e não se atreveu sequer a incomodar-me. Paciência, que eu por mim sempre gostaria de lhe ter dito adeus.”
Contou-lhe então a velha Jacinta o motivo das suas andanças pelas ruas da vila. Escandalizou-se a das frésias com semelhante infâmia cometida à memória dum homem que merecia todo o respeito dos seus concidadãos. E a visitante, por sinal, bem a acompanhava neste parecer.
“Ninguém lhe queria mal, tanto quanto sei,” disse a da jardinagem (e vai assim para algum descanso à onomástica do autor).
“Um homem trabalhador e muito estimado,” definiu a Cortelha.
E a outra: “Quem poderia ter cometido uma selvajaria dessas? Só um louco, ou um bêbado, sabe-se lá por que razão. Que com a loucura e a bebedeira… só Deus sabe o que pode acontecer!” Por isso lhe dava como conselho um saltinho a casa da Juliana Cerdeira, comadre da Gonçalina. E assim justificava a sua opinião: “Ela é que lhe fica com a chave da casa, lhe trata do jardim e lhe dá uma vista de olhos por tudo isso.”
Tem razão. Que até já me tinham falado nessa incumbência.”
“A Gonçalina esteve aqui anteontem de manhã,” revelou a Juliana Cerdeira.
“No sábado, portanto,” depreendeu a Cortelha.
“Exacto. E disse-me que tinha já apalavrado um táxi que a havia de levar ao Porto, ao fim da tarde, onde tomaria o avião para Frankfurt. E pode até acontecer que ela, antes de embarcar, tenha tentado falar comigo novamente pelo telefone, como às vezes faz, com alguma recomendação de última hora. Mas o meu telemóvel anda agora com birras e manias. E a verdade é que, entrementes, eu não podia deixar de ir a Valmanso, visitar uma sobrinha que teve dois gémeos muito lindos.”
“Neste mundo é assim: uns vão nascendo e outros morrendo,” e olhou para o vestido azul muito escuro de Juliana, a bem dizer de um luto menos rigoroso, discreto. (Sempre eram compadres.)
Receava a Jacinta dar o seu recado, mas o teor da conversa poderia favorecê-la. E agora ainda mais, quando a outra lhe apontou, sobre a cómoda, um macinho de notas de dez e vinte euros. “Olhe, ainda aí está o dinheiro que a Gonçalina me deixou para as flores com que hei-de enfeitar a campa de meu compadre Filomeno, nestes primeiros tempos.”
“Pois eu venho agora mesmo do cemitério. E, pelos vistos, a Srª Juliana ainda não sabe nada do que se passou.”
“O que foi, Tia Jacinta?” perguntou a outra, numa bem visível inquietação.
Jacinta a dar-lhe conta minuciosa do acto repugnante de vandalismo, e Juliana num crescente galgar de escândalo e horror. Depois:
“Meu Deus, quando foi isso?!”
“Quem sabe lá dizer exactamente? Mas foi obra dalgum excomungado, e só pode ter sido esta noite, Srª Juliana. Porque ontem, aberto o cemitério todo o dia, o caso não teria passado despercebido. Tanto mais que era domingo, e daí ser maior o número de visitantes.”
“Ai, toda eu tremo. Deixe-me sentar um instante. Sente-se também, Tia Jacinta.”
Sentaram-se frente a frente. E a velhota explicou que entrara no cemitério bem pouco depois das 9 horas. Justificou a sua presença no lugar: deixar umas flores na sepultura duma parenta afastada mas muito amiga. Quando depois deu a volta lá pelo fundo, por trás da capela, é que viu aquela desgraça. Ficou para morrer! Ainda quis avisar o guarda, o Matias. Por sinal não o tinha visto à entrada, na sua casinhola. Ele às vezes abria o portão de par em par e ia por aquelas tabernas das redondezas, correndo a via-sacra, a tomar os seus copinhos.
Juliana encaminhou a conversa para a ofendida, mais: ultrajada pessoa de Filomeno Cardoso, seu compadre, que muito estimava. (Por mais duma vez recorreu a um lenço amachucado, para enxugar as lágrimas, as quais à Tia Jacinta não pareceram fictícias.)
Aí por meados de 1980, com 25 anos incompletos, casado e já com um filho (que aliás veio a ser o único), decidira-se o Filomeno pela emigração. Não propriamente por necessidade, que o pai era até lavrador abastado. Mais por influência duns amigos de infância radicados na Alemanha, optando então pela acolhedora cidade de Frankfurt. Mas, à cautela, temendo arrependimentos mais comprometedores, foi sozinho. (Só uns anos depois se lhe juntariam a Gonçalina e o Álvaro.) Aproveitando uma prática razoável no domínio da gastronomia, fez-se ajudante de cozinha num restaurante do centro da cidade. Até que, correndo-lhe bem as coisas, se abalançou a alugar um espaço que converteu no aprazível Café-Restaurante Mirandum, de feição bem portuguesa, e mais especificamente transmontana.
“Todos os anos pelo Verão, durante o mês de Julho, explicitou Juliana Cerdeira, “lá encerravam o café-restaurante e vinham os três por aí abaixo, de automóvel. Pelo Natal era diferente. Era só o casal, ficando o pobre do Álvaro (que por sinal é excelente moço e meu afilhado) a cuidar do estabelecimento. Além disso, ao longo do ano, mas então sozinho, o Filomeno vinha de quando em quando, a tratar dos seus negócios, a abastecer-se dos nossos produtos regionais. Ele eram presuntos, enchidos, queijos, vinhos, azeite, conservas, ameixas secas… até grelos de couve ele levava!”
A Cortelha, que em melhores circunstâncias até se deliciaria com estes pormenores, dava sinais de certa inquietação. Por isso a narradora abreviou: “Agora desta última vez, ia ele de volta, a caminho da fronteira, quando a carrinha embateu contra um desses camiões muito grandes (TIR, ou lá como é). Ainda o levaram ao Hospital de Bragança, mas não resistiu. – Infeliz Filomeno, que tantas saudades nos deixas!”
A velha Jacinta levantou-se e, afagando-lhe os cabelos, procurava consolá-la: “Então, então, Srª Juliana, que havemos nós de fazer? São os desígnios de Deus.”
“Depois do tremendo abalo que foi receber a terrível notícia, cabia-me, sendo sua comadre, informar a Gonçalina do trágico acidente. Por fim, enchi-me de coragem e lá telefonei para a Alemanha. (Antes que a triste novidade lá chegasse por outra via, menos cuidadosa. Que sempre as más notícias, — é bem sabido —, correm mais depressa que as boas.) Não queria falar, assim de chofre, com a Gonçalina. Mas por acaso tive sorte: foi o Álvaro que me atendeu. Preparei-o o melhor que pude antes de, com a dificuldade que se pode imaginar, pô-lo ao corrente do que se passara. E pedi-lhe que, por enquanto, não dissesse à mãezinha que ele havia falecido; que estava ainda internado num hospital.”
Prosseguindo a relação de tais acontecimentos, Juliana recordou como Gonçalina e o filho encerraram o café-restaurante por 3 ou 4 dias, se meteram num avião e vieram ao funeral do Filomeno.
O Álvaro regressou logo no dia seguinte a Frankfurt. A mãe, essa, decidiu ficar mais algum tempo, para dar arrumação a vários assuntos que entretanto era necessário resolver. Entre eles o providenciar, em seus acabamentos de ordem estética, sepultura condigna de tão extremoso parente. E pôr isso de pé levaria bem umas semanas.
Na iminência de novas manifestações de pesar e consequentes lágrimas (até porque a própria Juliana acompanhara a comadre à casa especializada que, em Mirandela, se encarregaria da funerária encomenda), a prestimosa Jacinta Cortelha foi-se levantando: “E agora, Srª Juliana, que pretende fazer?”
“Eu vou mudar de roupa; vestir-me mais decentemente. E lá irei ao cemitério ver essa desgraça toda. Ai, toda eu tremo, Tia Jacinta. Oxalá se descubra ter sido isso… obra dum louco ou dum bêbado, nunca o trabalho sujo dalguém que quisesse mal a meu compadre e tratasse de o desfeitear e ultrajar depois de morto. Mas quem?, não me diz? Ele era mesmo uma pessoa muito estimada. E com razão. Tanto quanto eu o pude avaliar… aquilo era um pombo sem fel.”
Vendo-a assim nervosa e desaurida, ofereceu-se Jacinta Cortelha para acompanhá-la ao cemitério. Pelo que a outra agradeceu “a esmola” e começou a preparar-se para sair. No quarto contíguo foi mudando de roupa e escolhendo o lenço que poderia levar na cabeça.
A visitante passava um olhar fugidio pelas plantas de interior, que eram avencas e begónias, e pelos quadros (meras recordações impressas de calendários muito católicos), em que pontificava o Papa João Paulo II, entre o Sagrado Coração de Jesus e a Sagrada Família. A um lado da janela, um canário trapezista gorjeava na sua gaiola marroquina (oferta do compadre Filomeno).
“Que bem que canta este canário!” comentou a velhota.
“Se ele soubesse a vontade que tenho de o ouvir! Nestes próximos dias, creio que o vou deixar lá fora, no alpendre da cozinha!” respondeu a dona da casa, enfiando os sapatos.
Chegadas finalmente ao cemitério, deram de caras com o guarda, sentado à mesinha, no seu cubículo. Indagaram, como é natural, se ele já tivera conhecimento do que ali se passara, naquela noite. Pois não sabia de nada a esse respeito. Mas interrompeu o joguinho de paciência e recolheu as cartas, que guardou na gaveta. Ergueu-se e saiu. Encostou a porta de vidro gradeada de ferro. E, seguido das reclamantes, rumou em direcção à sepultura vandalizada
***
De regresso a casa, Juliana procurou na sua agenda os números telefónicos da comadre (da residência e do café-restaurante). Àquela hora era quase certo encontrá-la no estabelecimento. E na verdade assim aconteceu. Falou primeiro com um dos criados, que prontamente chamou a patroa. As próximas palavras foram deste teor: “Afinal, Gonçalina, quando é que saíste do Porto?”
“Ora, no sábado à tarde, como estava previsto.”
Lacrimosa e soluçante, Juliana desdobrou o desolador panorama do mau sucedimento. Longínqua, no coração da Europa, Gonçalina vibrava de indignação. (Isso era bem perceptível.)
Por fim, acalmados os ânimos, perguntou Juliana: “Queres que me encarregue de arranjar alguém que dê um conserto naquilo?”
“Pois sim. Mas ainda falaremos sobre o assunto. – Não. Não mexas em nada, por enquanto. Eu depois telefono.” E despachou a comadre, sem paciência, com o pretexto de que tinha fregueses à espera.
Mas Gonçalina, em vez de atender qualquer freguês (que até os havia, e num preguiçoso aguardar), empreendeu uns passos vacilantes em direcção ao filho, que preparava uma tosta mista: “Vou ter de ir a casa, Álvaro.”
“Algum problema?”
“Depois te explico.”
***
Já em casa, numa pilha de nervos, cirandando dum lado ao outro, a viúva Cardoso procurava fazer o ponto da situação. E, por uma inerente associação de ideias, foi desbobinando a memória daquelas últimas semanas.
O acidente dera-se a 18 de Março. O funeral foi três dias depois. Começou logo a tratar do arranjo definitivo da sepultura. O que levou quase dois meses, e mesmo assim devido à insistência com que defendeu aquela causa. Mas ficou tudo pronto. E muito a seu gosto, por sinal.
Nas vésperas da partida de Portugal, lembrou-se de dar uma vista de olhos pela salinha que Filomeno utilizava como escritório.
Havia sobre a secretária um retrato deles ambos, amorosamente aconchegados, no dia matrimonial. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos.
Em dado momento, sem saber como, sem qualquer intenção manifesta, deu-lhe para abrir uma gaveta daquele móvel pesadão, e depois outra. Tudo absolutamente normal. Insignificantes ninharias. Papéis velhos. Facturas soltas, recibos de fornecedores. Ah, mas a gaveta de baixo, do lado direito, essa estava fechada à chave. Sentiu um grande desejo de abri-la. E a chave? Ora o disparate! Pois não guardara o chaveiro do falecido, recuperado do acidente? Havia lá umas quantas, mas nenhuma que servisse. Ia desesperando. Mostrava-se disposta a arrombar aquela gaveta! Mas seria uma pena, na verdade.
Correu, esquadrinhou todo o escritório, voluteando por aqui e por ali, e nada. Até que se lembrou de subir a uma cadeira e passar a mão pelo alto da grossa e dourada moldura trabalhada, que preservava o diluído retrato do avô paterno, aliás professor primário, a quem ela devia as primeiras letras. Foi um gesto brusco, exasperado, que soltou uma nuvenzita de poeira e, Deus do Céu!, uma chave niquelada, a qual saltitou, tilintante, no frio chão de granito.
Bem acertou na mera suposição, puramente instintiva. A chave era mesmo aquela e, aberta a gaveta, despertou-lhe a atenção um envelope rosado, grande formato, cujo conteúdo se apressou a verificar. Primeiro, uma boa mancheia de fotografias que a deixaram perplexa. Em todas elas surgiam Filomeno e Juliana, as mais das vezes estreitamente abraçados, em lugares tão diversos como: o escadório do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego; o pino da Serra da Estrela; um barco turístico subindo o rio Douro, possivelmente nas redondezas de Mesão Frio… e mesmo em Fervença, em casa dos Cardosos ou da Juliana Cerdeira, por exemplo.
Gonçalina olhava para aquela profusão de imagens em que a presença de seu marido parecia, era de certeza comprometedora na quinta casa. Daí começarem a escorrer-lhe, pobre mulher, uns suores frios pela testa.
Para cúmulo da patifaria, apareceram no fundo do envelope umas boas dezenas de cartas de letra miudinha, que logo ela reconheceu da mão de Juliana e dirigidas a Filomeno. Cada qual qual ainda no seu próprio sobrescrito original, tendo como endereço sistemático uma qualquer posta restante de Frankfurt.
Deixou-se desmoronar na cadeira de braços e, avidamente, foi surripiando uma frase avulsa em cada página, até que viesse a encontrar o ânimo e a disposição de lê-las de ponta a ponta, de cabo a rabo, de fio a pavio.
“(…) Fica então combinado que nesse fim-de-semana estaremos bem juntinhos, nas Caldas do Gerês, o que nos vai assegurar muita saúde, acredita. Hás-de perguntar ao… Valentino e eu perguntarei à … Passareta o que têm ambos a dizer sobre este assunto. (…)”
“(…) Por certo que vou ter a oportunidade de guisar o Fricassé de Pato com Canela, à moda de Ribeira de Pena, já que tanto o apreciaste da última vez. (…)”
“(…) Mil beijinhos. Recomenda-me muito ao vigoroso e incansável… Valentino. Aceita também as muitas lembranças da… Passareta, que, segundo os últimos sintomas, padece as mais ardentes saudades do dito-cujo. Imagino como ele também não deve estar ansioso por este próximo reencontro no melhor lugar da Fervença, coisa que bem sabemos! (…)”
“Grandecíssemos filhos da puta!” deflagrou a viúva. Não seria tão ingénua que não adivinhasse o verdadeiro sentido do críptico linguajar.
A fúria atingiu o seu auge e foi desvanecendo, pouco e pouco. Voltou portanto a guardar na mesma gaveta a tão reveladora documentação. Deu a volta à chave e guardou-a no bolso do vestido. Ergueu-se, decidida.
Foi então que, como se nada de grave a tivesse atingido, resolveu despedir-se da comadre Juliana. O que fez ainda nesse sábado de manhã, com inaudita serenidade.
No domingo, depois do jantar, meteu num forte saco de plástico um escopro e um martelo devidamente entrapado na cabeça (para evitar excessivo estardalhaço, muito embora o cemitério ficasse isolado do casario da vila). E, aguardando uma hora mais propícia à execução do seu projecto, ainda se espojou no sofá e consumiu duas telenovelas e outros tantos cálices de anis escarchado.
***
Portanto (e retomando o fio à meada), ficou Gonçalina de telefonar à comadre em momento mais oportuno, de casa e não do café-restaurante. E assim o fez.
“Esquecia-me de recomendar-te que metesses a chave…”
“Qual chave?”
“Qual havia de ser?, sua cabra com todas as letras! A chave de minha casa, que eu há mais de 10 anos te confiei! Olha, mete-a naquele sítio que bem sabes qual é! Muito lá para dentro! No cu!, ouviste bem?!
“Gonçalina!”
“É que acabei de telefonar ao Mestre Floriano, a pedir-lhe que me trate de substituir as fechaduras, tanto a da porta da sala como a da porta da cozinha! E ponto final na conversa, sua fingida!, sua hipócrita!, sua trai dora!”
“Escuta, Gonçalina! Quando andaste, alta noite, naquela batalha campal, no cemitério, não deste por te ter caído da orelha um dos brincos de filigrana? Alguém o encontrou! Pessoa honesta, e foi levá-lo à Polícia! – Fingida, eu? E tu és mentirosa, como não há outra! Como poderias tu partir no sábado à tarde, se precisavas de estar aqui bastante depois, na noite de domingo? Aliás, houve quem te visse no quintal a apanhar maçãs, ontem de manhã, domingo, se bem te lembras. E o próprio taxista que te levou ao aeroporto disse mesmo, sem papas na língua, a hora a que saíram de Fervença: ‘Aí p’las 5 e um quarto da madrugada.’ Já hoje, note-se bem, segunda-feira, de acordo com o meu calendário. Se eu for perguntar ao aeroporto o dia e a hora exacta em que embarcaste… talvez não me digam. Mas não te esqueças de que sempre há-de haver pessoa de mais autoridade a quem não façam questão de esconder nada de nada! Por isso… bico calado! Fica-te p’lo meu conselho!”
Gonçalina Cardoso desligou ostensivamente o telefone, atordoada. Num torvelinho, acudiu-lhe à lembrança o picaresco pormenor das mútuas saudades do Valentino pela Passareta e da Passareta pelo Valentino.
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