NORBERTO ÁVILA

 

FRENTE À CORTINA DE ENGANOS

 

 Romance (2003-04 / Inédito)

 

Sinopse da obra e transcrição integral do Capítulo 2

O romance Frente à Cortina de Enganos (o 2º a chegar a um definitivo acabamento depois de No Mais Profundo das Águas / Edições Salamandra, 1998), tem como ponto de partida uma peça de teatro: Fortunato e TV Glória, escrita em 1995 e representada pelo Teatro Animação de Setúbal,  3 anos depois. As personagens transitaram todas para a versão narrativa, confrontadas com muitas outras agora expressamente criadas. Os horizontes da ação (confinada a Lisboa) alargaram-se à Beira Alta e mesmo a Veneza.

SINOPSE:

Fortunato Galisteu (que de Valdevide, nas faldas da Serra da Estrela, se passara para Lisboa, aos 11 anos, como aprendiz de mercearia) veio a casar com Laura, filha do patrão Inocêncio. E decorridos uns anos sobre a morte deste, é já senhor duma cadeia de supermercados na Capital e nos arredores.

Vive o casal numa bela vivenda, no Alto de Santo Amaro, com dois filhos: Marco e Sandra, ambos estudantes: ele, de Publicidade; ela, de Letras. Refira-se ainda o 5º parente próximo: a velha Glória, mãe de Fortunato.

Com eles habita o casal Dionísio-Belmira, motorista e cozinheira, respetivamente, cujo gosto pela televisão é manifesto, e nisso apenas ultrapassado por Glória e D. Laura. Completa o conjunto Clara Serafim, uma jovem criada.

A um concurso televisivo de nome Amor com Amor se Paga, congeminado por uma tal Claudite Marlene, concorrem Marco e Sandra (não revelando, naturalmente, a sua condição de irmãos). Os pseudo-apaixonados acabam vencedores. Além dum vultuoso prémio pecuniário, uma semana em Veneza. O que dá origem a divertidas peripécias, uma vez que o verdadeiro apaixonado da rapariga, Bruno, os acompanha e, para efeitos das reportagens realizadas por Claudite Marlene, tem que passar a segundo plano, limitando-se a ser o guia turístico que realmente é (filho do proprietário duma agência de viagens).

No dia em que os Galisteus festejam, com alguns amigos convidados, os 75 anos de Glória, Fortunato manifesta a sua decisão de criar uma estação televisiva, que terá precisamente o nome da homenageada: TV Glória. E, a partir daí, vão todos deslizando no antegozo do que poderiam ser alguns programas futuros.

Num deles, a que dão o título de A Minha Vida Dava uma Telenovela, Marco entrevista o Rei dos Supermercados, o que proporciona ao magnate uma evocação dos anos difíceis da infância e adolescência, os primeiros tempos na mercearia.

Noutro jogo semelhante (e agora o programa chama-se Felizes para Sempre), é Sandra quem entrevista Laura e o marido. Laura conta como sentiu despertar a sua paixão por Fortunato. De como este a deixou grávida ao partir para o serviço militar em Angola. Gera-se então uma balbúrdia entre o casal sobre aquele a quem eles chamam “o nosso Marco”. E ficamos a saber que Laura (isto há 24 anos) havia realmente dado à luz um menino, o qual, sendo muito chorão, ela levava para o leito conjugal; e que, com todos aqueles cobertores, o sufocou. Ora, por outro lado, Belmira (nesse tempo cozinheira duma taberna ali do bairro) dera também à luz um menino, de pai incógnito. E, não tendo meios para criá-lo (e sendo solteira), aceita que D. Laura o leve, em substituição do infeliz recém-nascido.

Violenta altercação de Fortunato com D. Laura. Depois, apaziguando-se ele finalmente, pergunta-lhe se alguma vez Belmira lhe confidenciou quem seria o pai daquele tão inesperado bebé. Mas nada. Isso tem sido um segredo bem guardado.

Eis senão quando aparece Belmira, transtornada. Marco dirige-se para ela, chamando-lhe mãezinha. “Ó filho, deixa-me, por agora. Ai que eu rebento!”

Fortunato pergunta-lhe o que aconteceu. E ela: “A Clara, aquela galdéria, está fechada no quarto! Com o meu homem!”

Prosseguem na residência dos Galisteus estes fantasiosos exercícios televisivos. Num deles, arremedando o programa Só Quero o Teu Perdão, reconciliam-se Belmira e Dionísio. Noutro, segundo o modelo de Encontros Espantosos, Andreia (namorada de Marco) entrevista-o, e oferece-se como intermediária para se averiguar a verdadeira paternidade do rapaz. E Fortunato acaba por aparecer, já que fora ele o emprenhador confesso de Belmira!

Entretanto Sandra põe-se a escrever uma telenovela, ainda sem título, de que, a dado passo, ela e Marco ensaiam umas passagens, na presença crítica de Bruno (namorado de Sandra). “Primeiramente”, diz Marco, “tínhamo-nos por irmãos verdadeiros, filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Depois, quando D. Laura (e creio que não fica mal esta designação) revelou que eu não era filho dela mas sim de Belmira e de pai incógnito, quando tu e eu já não éramos irmãos coisa nenhuma, aconteceu esboçar-se entre nós uma relação afetiva de outro género…” (Etc., etc.)

A velha Glória, na sequência dum sonho, motiva Fortunato a uma viagem à Serra da Estrela. O regresso às origens de toda a família, passados tantos anos. E em Valdevide, sua aldeia natal, no terreiro da Sociedade Recreativa, Fortunato reapaixona-se por um granítico penedo e trata logo de o adquirir, prometendo, em contrapartida, patrocínios de vária ordem. Agora é preciso transferir o pedregulho descomunal para o jardim da residência lisboeta.

Na sua ânsia de informar-se sobre o mundo televisivo, Fortunato aceita um reencontro com Claudite Marlene (com quem teve em tempos um devaneio amoroso). Subindo pela Mouraria, em direção ao Castelo de São Jorge, descobre que o “seu armazém de mercearia” fora transformado em lavandaria de indianos.

Finalmente, no jardim de Fortunato, procede-se à bênção do granítico penedo, pelo bispo resignatário D. Teodósio, na presença de muitos convidados.

Tempos depois, grande desilusão de Fortunato, noutro momento de convívio familiar e social, quando, ao ser transmitida a conferência de imprensa do diretor-geral da Comunicação Audiovisual, se fica a saber o resultado do concurso Novas Televisões. Das 5 propostas apresentadas, o júri decidiu escolher… a TV Super! Lá se foi o projeto TV Glória! De modo que o furibundo Fortunato, apontando o telecomando ao televisor, o atinge com sobrenatural energia, de que resulta escaqueirar-se o ecrã repulsivo.

Incidente premonitório? A verdade é que ao desgosto geral sucedeu o luto, pelo falecimento da velha Glória.

O romance não fica por aqui. Restam ainda 2 capítulos. Mas a sinopse já vai longa, pois não é verdade?

 

Capítulo 2 do romance FRENTE À CORTINA DE ENGANOS

 

Nove horas da manhã, mais minuto menos minuto, entrou Fortunato no edifício da Administração dos Supermercados que ostentavam o seu nome de empresário bem predestinado e melhor sucedido. E, como sempre, apressou-se a convocar o Arsénio Camarinha, seu braço direito, que tão acostumadamente o acompanhava numa visita-surpresa de inspeção a qualquer das nove unidades da empresa, as quais preponderavam em Lisboa e cidades e vilas do vasto tecido urbano de concelhos limítrofes.

Até há pouco tempo reservara o magnate as segundas, quartas e sextas a estas súbitas incursões, tendo até a imprevidência de informar, de véspera, o íntimo colaborador de qual o supermercado escolhido para a apertada inspeção. Mas, por mais de uma vez, desconfiou que o Camarinha (sabe-se lá se, com o propósito de, interesseiramente, deslizar nas boas graças dos respetivos gerentes) lhes fazia chegar um oportuno alamiré, prevenindo-os do acontecimento, para que tudo estivesse em ordem, ou pelo menos evitassem que o patrão-mor os achasse pecantes em qualquer aspeto de primordial importância. Agora era assim: Instalados os dois personagens no assento traseiro do carro, que era um BMW azul escuro, Dionísio, o motorista particular de Fortunato, fechava cuidadosamente a porta do lado em que ele entrara e ia sentar-se ao volante, aguardando ordens.

Só então dizia o amo e senhor, “S F Amadora”, sendo S F a abreviatura de Supermercado Fortunato. Ou talvez “S F Benfica”, ou “S F Estoril”. E lá partiam, ouvindo quase sempre fados de Hermínia Silva e Alfredo Marceneiro.

Naquela manhã de primavera (era isto pelo fim de abril, com um solzinho acariciador), iam chegando ao Cacém, onde Fortunato mergulhara as suas mais recentes raízes comerciais, com assinalado êxito, aliás, circunstância comum no currículo empresarial de tão vultosa personalidade. Repenicou-lhe no bolso do colete o telemóvel cor de espinafre, cujo toque musical era Ó Oliveira da Serra, por ele mesmo escolhido no vasto repertório, que incluía a havanera da Carmen, O Sole Mio, A Cavalgada das Valquírias e outras variedades oferecidas pelo fornecedor de tais endróminas da tecnologia. Relanceando o visor, apercebeu-se de não haver qualquer nome escrito, pelo que se trataria de alguém de contacto menos frequente, não figurando ainda na lista telefónica do aparelho. (A Sandra e o Marco é que normalmente se ocupavam dessas miudezas.) Resumindo e concluindo: era o Sr. Libânio, encadernador, com oficina na Rua da Barroca.

“Olá, Sr. Libânio! Como é que vão essas forças?”

“Bem, obrigado, Sr. Fortunato. E como está o senhor?, e todos os seus?”

“Cá vamos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas, como se costuma dizer, enquanto Deus quiser e o Diabo deixar.”

“O trabalhinho está pronto, Sr. Fortunato. Obra esmerada e perfeita, isso lhe garanto eu. Mas… como executante da encomenda… naturalmente sou suspeito na apreciação.”

“Muito bem, muito bem. Já não era sem tempo, caramba! Isso levou meses e meses!”

“Depressa e bem não faz ninguém”, proverbiou o conceituado artista.

“Mais rápido ponho eu de pé um dos meus supermercados.”

“Mas não o faz sozinho, meu caro amigo. E eu, pobre de mim, desde que morreu o meu filho, naquele trágico acidente…”

E, pegando na deixa, Fortunato desviou para baixo o telemóvel e recomendou ao motorista: “Vai mais devagar, Dionísio, mais devagar.” Depois, reutilizando o aparelho (moderada que foi a velocidade), não escapou a ouvir novamente a magoada queixa do encadernador, que há três anos ficara desacompanhado neste mundo: em casa e no trabalho.

Questionaram então as horas a que Fortunato poderia deslocar-se à oficina de Mestre Libânio. Concordaram que “aí pelas 11 e 30, talvez mais perto do meio-dia”. Pelo que o magnate, antegozando os primores do trabalho encomendado, decidiu simplificar e abreviar a visita ao S F Cacém, que, coisa nunca vista!, despachou em pouco mais de vinte minutos, quando, em circunstâncias normais, levaria bem uma hora de empenhada e miudinha curiosidade, com muitas perguntas e recomendações ao pessoal mais responsável, se não mesmo alguma inconveniência de linguagem, algum destrambelho digno de memória, para exemplo de empregados menos zelosos.

Cumprida assim a principal tarefa do dia, uma quarta-feira, Fortunato Galisteu retomou a viatura, deu ordem a Dionísio para que passasse pela Administração (junto ao Parque das Nações), a deixar o Arsénio com a sua imprescindível pasta de couro granadino, e seguisse de imediato para a Rua da Barroca, ao Bairro Alto, onde, num rés-do-chão de duas portas e uma janela de vidros pequeninos, era a oficina do mestre-encadernador.

E, por uma providência, havia ali mesmo, defronte da casa, frescamente pintada de rosa velho com barras brancas, um ótimo lugar para estacionar o carro.

“Fico aqui à espera, Sr. Fortunato?” perguntou o motorista, que lhe foi abrir a porta da viatura.

“Pois sim. Se for necessário virei chamar-te.”

Entrou Galisteu na oficina, que já conhecia de uma visita há quase um ano. E logo o mestre, que, no espaço maior, para além de um arco abatido de tijolo à vista, aplicava ouro no título duma lombada, lhe fixou, por cima dos óculos, o corpanzil paquidérmico. De pronto interrompeu o trabalho e apressou-se-lhe ao encontro, na antecâmara.

Pois ali, bem frente à entrada, numa estante de cedro e em disposição de realce, prevalecia o retrato do filho de Libânio, o malogrado Virgílio (cujo nome era fervorosa homenagem ao poeta sublimado, que o mestre-encadernador lia diretamente no latim veterano com o maior desembaraço.) E Virgílio, o saudoso acidentado da autoestrada do norte, cruzava os braços, sorridente e esperançoso, a dois passos de um fresco romano restaurado, que tudo indicava representar o glorioso vate. (Recordação de uma inesquecível viagem que pai e filho haviam empreendido à Itália, muito antes do trágico desastre.) A excelente fotografia, da autoria do próprio Libânio, emoldurada em ébano, recebia o calor duma chama acesa – duma vela vermelha, de molde aspiralado, salomónica, digamos – e o perfume duma rosa cor de fogo.

Acudindo-lhe ao espírito a sua condição de pai, Galisteu, respeitoso, reteve por um instante o olhar na imagem do desventurado jovem. E, como se quisesse afugentar a comoção e a transparência de qualquer sentimentalismo, perguntou: “A rosa é natural?”

“Pois não havia de ser, Sr. Fortunato? Tenho uma aversãozinha congénita a todo o tipo de flores artificiais.”

“Eu por mim não sou contra, Sr. Libânio. Há flores artificiais – e eu tenho-as em abundância lá nos meus supermercados – que parecem mais autênticas que essas que poderemos apanhar em qualquer jardim.”

“E quem serei eu para não respeitar os gostos e as predileções de uma pessoa que muito prezo?” Então, com um gesto amplo e cordial da mão direita, convidou-o a passar da antecâmara à oficina propriamente dita.

Torneando uma sólida bancada de pinho e virando à esquerda, deu de caras com uma estante larga e quase rasante ao teto, que assim cobria toda uma parede. Aparentemente, aquilo a que já se poderia chamar uma razoável biblioteca, até pela diversidade de volumes, de espessura e altura criteriosamente associadas, em harmoniosa sequência, que era um verdadeiro prazer para os olhos. Tudo em tonalidades de castanho, cor de mel, vermelho, vermelhão, cereja, cor de tijolo e salmão. No entanto, notou Fortunato Galisteu que era sistemático apresentarem-se, em cada uma das 24 prateleiras, os blocos de livros chegados ao lado esquerdo, sobrando sempre, portanto, no lado oposto, um vazio de um palmo ou pouco menos. Isto porque (e já iremos desvendando o mistério) as estantes do escritório de Fortunato, na sua residência do Alto de Santo Amaro, eram outro tanto mais estreitas, segundo as medidas que o próprio mestre-encadernador teve o cuidado de conferir no mesmíssimo local.

Mas então, perguntar-se-á: por que motivo não aconchegou Libânio toda aquela livraria, de cabo a rabo, sem os ditos intervalos? O autor do romance pede agora ao seu personagem que, com um simples gesto, sem a mínima palavra, elucide o leitor.

E Mestre Libânio, dirigindo-se à parte central da estante, extremou as mãos calejadas e retirou todo um bloco de livros, de falsos livros, aliás, porquanto, na realidade, se tratava de uma caixa ou estrutura oca, em cuja fachada se perfilavam as fingidas lombadas e, por conseguinte, de não menos fictícios volumes, supostamente grávidos de informação, primor literário e muita sapiência. Recuou, assim, com esta parcela de artificiosa ostentação, que assentou no tampo devoluta da bancada mais próxima, de frente para Fortunato Galisteu, o qual, acercando-se um passo e curvando ligeiramente o corpanzil, não tardou em exclamar: “Sim, senhor! Estou… de todo em todo rendido à qualidade do seu trabalho!”

“Agrada-me, como é natural, ouvir tão elogiosas palavras, Sr. Fortunato. E muito lhas agradeço, de todo o coração.”

O magnate, olhar saltitante por aqui e por ali, soletrava alguns títulos douradíssimos: Poemas Escolhidos de Fernando Pessoa, Dom Quixote, Os Lusíadas, Oliver Twist, Memorial do Convento, Peregrinação, A Divina Comédia. E, se acaso se dispusesse a avaliar a riqueza civilizacional, de outras prateleiras, bem poderia encontrar Cem Anos de Solidão, os Discursos de Winston Churchill, o Manual do Encadernador, a Bíblia Sagrada, o Kama Sutra, Mau Tempo o Canal, as Tragédias de Sófocles, Moby Dick, um recente ensaio de António Damásio, o Código de Justiça Militar, um Curso de Álgebra Superior, as Fábulas de La Fontaine, as Obras Completas de Shakespeare…

Muito embora lisonjeado com os encómios que em larga cópia lhe eram dirigidos, Mestre Libânio não deixou de pensar, muito no íntimo da sua modesta pessoa: “Ora aqui está um parolo, um burgesso consumado, um patarata triunfante. No que respeita à vida cultural, bem lhe bastam as chamativas e impressionantes aparências.”

Por um bem largo período se entregara o artífice, pela primeira vez, a um trabalho manifestamente estapafúrdio. Sem o privilégio que tanto apreciava: o de poder folhear, de quando em quando, cada livro que, trazido à sua banca de encadernador, se submetia a meticulosas operações de cosmética e salvaguarda para os longos tempos vindouros. Que assim, compulsando-os, sempre ia vendo satisfeito o seu inveterado gosto de aprender e de cultivar-se. Diga-se de passagem que, procurando uma palavra em qualquer dicionário, consultando qualquer enciclopédia, deambulava, depois, pela mesma página ou por outras, nesse fascínio do conhecimento. Entretanto, ora se penalizava por haver pactuado com aquela vaidade perfeitamente demencial do endinheirado cliente, ora se consolava com a convicção atenuante (embora não de todo tranquilizadora): a de que em certas bibliotecas particulares (e ele conhecia algumas mais ou menos suspeitas quanto a isso), – verdadeiros repositórios de volumes autênticos, encadernados ou muito simplesmente brochados, – o peso, a autoridade das palavras permaneciam apenas potenciais e latentes, ano sobre ano, geração após geração, satisfazendo-se os possuidores com a fugaz sensação causada aos que lhes frequentavam o escritório ou a sala de estar.

E Mestre Libânio chegava mesmo a interrogar-se se não infringira algum tanto a ética do “entrajador” de livros (que para ele todas as profissões tinham uma, bem específica), com aquele parêntese de largos meses, ao descambar numa delirante incursão pelos domínios da pura cenografia. E quem sabe até se já não poderia propor a sua arte ao Teatro Dona Maria II ou ao Teatro de São Carlos? Pensando melhor, a qualquer estúdio de televisão, porquanto aos teatros convém grosso modo uma cenografia de declarado fingimento; ao meio televisivo, uma cenografia de muito real aparência, se não mesmo a própria realidade transplantada para esses espaços de múltipla vocação semântica, que os projetores atenuam ou relevam.

Parecendo ao mestre-encadernador que o invulgar visitante se convencera integralmente da excelência da execução de tão desconfortante encomenda, repôs na estante o laborioso artifício e convidou Fortunato Galisteu a sentar-se um instante, o que ele aceitou, para que tomassem ambos uma bebida de congratulação pelos resultados obtidos.

“Vai um licor de folha de figueira, Sr. Fortunato?”

“Licor de folha de figueira? Nunca tal ouvi! Isso será comercializável?”

“Pois é ótimo! Verá que vai gostar!”

O magnate deu mostras de apreciar muito aquela especialidade, e quis logo saber onde se poderia arranjar aquela maravilha, pelo que o encadernador se comprometeu a enviar-lhe, por aqueles dias, – talvez quando a ilusória biblioteca houvesse de ser entregue no Alto de Santo Amaro, – uma ou duas garrafinhas. (Produto a bem dizer artesanal, que um velho amigo, propenso a semelhantes manipulações alcoolodigestivas, lhe fazia chegar de Torres Novas, de tempos a tempos.)

Saboreava o graúdo cliente a tão rara quanto especiosa bebida, de um verde forte e luminoso, e o ofertante, numa súbita pausa na conversação, recordava os antecedentes de todo aquele negócio que, pela negativa, bem poderia servir de exemplo para a restante carreira profissional:

“O que lhe peço, Sr. Fortunato, é que me diga, aproximadamente, o número de livros que tem para encadernar. E ainda: Médios volumes, na sua maioria? Grossos, finos?”

“A espessura deles, isso é lá consigo, Mestre Libânio,”

“Como assim? Poderei, num determinado caso, optar por um cartão mais ou menos forte, fugindo ao que é mais habitual. Mas não é isso que está em causa. O que pretendo saber é se, na sua biblioteca, predominam os volumes encorpados, delgaditos, assim-assim.”

E eu volto a afirmar que isso é assunto que lhe compete exclusivamente.”

Mestre Libânio, azoinado e confuso, passava e repassava na tijoleira irregular, enegrecida pelos anos. E Fortunato acrescentou: “Mais, se me permite: Os títulos das obras e os nomes dos respetivos autores.”

O encadernador estacou, volvido para o avultado personagem, e sentiu-se, por um instante, incapaz de proferir palavra.

Foi então que tudo se esclareceu, para maior espanto (diplomaticamente controlado) do laborioso artífice.

“Aquela minha estante, Mestre Libânio, coisa fina de mogno americano, totaliza, nos seus oito módulos, 24 prateleiras. Prateleiras de 84 centímetros (medida interior). O que, nas contas de Sandra, minha filha, dará uma extensão de 20 metros, ou um poucochito mais.”

Um repentino indício de desarranjo intestinal convocou Libânio à privacidade da estreita casa de banho. “Um momentinho, se me permite. Eu já volto.” Depois, sentado na sanita, aliviando as entranhas, consultou o ânimo e a consciência. E, ao puxar a corrente do velho autoclismo, dispunha já duma resposta tranquilizadora: “Pois muito bem, Sr. Fortunato Galisteu. Até ao fim desta semana lhe enviarei o orçamento.”

NORBERTO ÁVILA

www.norberto-avila.eu

 

Outras passagens deste romance acessíveis, online, no Caderno Açoriano 16, da Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia (dedicado a Norberto Ávila): Capítulo 8 – [ EM VENEZA ].