SANGUINHAL
Adolescente ainda, o meu prazer maior
– aqui desembarcado nesta ilha altaneira de São Jorge –
era trilhar caminhos ignorados
e conhecer recônditos lugares.
Mas nunca aconteceu descer a encosta abrupta
e visitar-te, Sanguinhal,
enquanto a vida serenamente circulava
em teus caminhos remotos, quase bíblicos,
entre vinhas e casas tão dispersas.
Agora, que dez anos são passados
sobre o sismo tremendo, Sanguinhal,
sismo destruidor dos bens e assustador das almas,
já o teu nome, Sanguinhal, se ouve
como uma voz de sombra
subitamente despertada
num silêncio antigo.
Trago comigo o remorso de não ter ido ver-te,
como se fosses um parente velho
cuja visita, por simples negligência,
se foi, ano após ano, retardando
e se deixou morrer.
Agora desembarco na deserta praia de calhau redondo
e vejo estas ruínas dolorosas,
estes telhados interminavelmente despejando as telhas,
estas janelas consternadas, desmedidamente abertas
como olhos de espanto.
Agora me comovo e quase choro,
eu, um intruso nesta casa anónima,
esta casa pequena de que nada sei
e que tanto me deixa imaginar,
nos percursos que vão do nascimento à morte,
com demoradas passagens pelo amor.
(Rejeito a malquerença. E muito mais o ódio.)
Este é o forno, agora escuro e frio,
por certo a contragosto aposentado.
Esta é a mesa de jantar, partida.
Sobre ela, os pratos fundos, de cerâmica,
cuja missão na terra terminou.
Esta é a cama, exígua, do amor vigiado
por um anjo da guarda entretanto fugido.
Este é o berço pequenino, estreito,
sem menino
para embalar.
E ali está na parede musgosa o relógio parado.
Não à hora do sismo. Ainda teve alento
para um pouco mais.
(Com que lágrimas na voz não terá ele
chorado a solidão!)
Oh quem pudesse agora, Sanguinhal,
gritar teu nome
e assim ressuscitar-te!
NORBERTO ÁVILA