NORBERTO ÁVILA
DO DESENCANTO À REVOLTA
Peça em 2 partes
(1982. Nunca representada.)
A uma extensa peça teatral intitulada Os Deserdados da Pátria, em 2 partes (escritas com um intervalo de 6 anos: 1982 e 88), pareceu conveniente dar uma divisão mais apropriada às possibilidades de realização cénica dos nossos dias apressados. Pelo que se guardou o referido título para um dos painéis do atual díptico: o segundo, por lhe parecer mais adequado. Houve que dar um nome ao primeiro: Do Desencanto à Revolta. Temos agora duas peças de certo modo autónomas, mesmo assim ainda interdependentes quanto baste e até complementares, com protagonistas e locais de ação maioritariamente comuns, entrechos com estreita relação, formando, de qualquer maneira, um todo coerente.
Nesta ficção teatral tratou-se de recordar como, no curto espaço de meia dúzia de anos (1540-46), Portugal mudou radicalmente o seu rumo e, de país progressista, se foi tornando um apertado e sinistro cantinho da Europa.
Obra que mereceu uma Menção Especial do Júri dos Prémios do Centro Almeida Garrett, foi depois selecionada para uma antologia – Teatro Portugués Contemporáneo – anunciada (em 1992) pelo Ministério da Cultura de Espanha, projeto infelizmente não concretizado.
Em1997, a revista Discursos (Universidade Aberta, Coimbra) dedicou-lhe larga atenção, ilustrando com algumas cenas o seu número especial: Teatralidade e Discurso Dramático.
O texto integral do díptico Do Desencanto à Revolta / Os Deserdados da Pátria veio a ser publicado anos depois: Novo Imbondeiro, Lisboa, 2003. Em 2ª edição, na coletânea Algum Teatro (20 peças de Norberto Ávila, em 4 volumes; Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2009, vol.II).
OPINIÕES CRÍTICAS
“A integração neste número de Discursos, consagrado à teatralidade e ao discurso dramático, deve ser entendida como um gesto de divulgação, mas também, ao mesmo tempo, de homenagem que é devida aos autores que insistem em evidenciar que existe uma produção dramatúrgica portuguesa com qualidade reconhecida. No caso de Norberto Ávila, esse reconhecimento traduz-se, em grande parte, nas numerosas traduções e encenações de que os seus textos têm sido objeto, fora das nossas fronteiras. O que, diga-se de passagem, não deixa de ser um fenómeno típico de uma terra tantas vezes desinteressada da voz dos seus próprios profetas… “
CARLOS REIS
“Este entrelaçar da História na Ficção é feito de uma forma que posso adjetivar de magistral. […] Este foi o momento do nosso passado que Norberto Ávila decidiu trabalhar e recriar, constituindo estes textos, não uma visão derrotista da História, mas antes um hino à liberdade e ao progresso, que bem merece ver as luzes do palco.”
ANA ISABEL VASCONCELOS
SINOPSE de Do Desecanto à Revolta (seguida da transcrição da cena 4)
Em 1540, a nau São Jorge, da pequena frota de Baltasar de Montemor, está prestes a partir de Antuérpia para Lisboa. Bernardim, filho do armador, e Jerónimo Garcia, seu amigo e ex-companheiro de estudos em Paris, preparados para a viagem, são surpreendidos com o inesperado aparecimento de Damião de Góis, apenas chegado de Lovaina e trazido por João Rebelo, nosso Feitor na Flandres.
Mutuamente se informam sobre os casamentos de Jerónimo, Bernardim e Damião. O primeiro, com Ester, filha de Samuel de Oliveira, judeu com loja de representação de obras de arte, em Lisboa. Bernardim, com D. Catarina (cujos pais, sendo ela menina de poucos anos, morreram num naufrágio da nau sobrecarregada, no regresso da Índia. Pelo que o armador D. Fradique Alvarenga, sentindo-se responsável, a acolheu como “sobrinha”.)
Quanto a Damião, casara com a filha de um Van Hargen, do Conselho Flamengo de Carlos V.
Bernardim mostra-se na melhor disposição para assumir os destinos dum novo colégio entretanto criado em Lisboa, por D. Fradique; e, tendo já assegurada a colaboração de Jerónimo, trata de assegurar a (mais problemática) de Damião.
Chegado Bernardim a Lisboa, recebe de D. Fradique notícias que muito o espantam. O galeão Santelmo, de que este último é proprietário, foi rebatizado com o nome do Sumo Pontífice: Paulo III, tal como o referido novo Colégio, cujo nome previsto seria o de São Marcos. Mais alarmante ainda: o beato Alvarenga diz haver outro pretendente ao lugar de reitor, “pessoa de certo peso”, que muito lhe foi recomendada. E, perante esta situação, D. Catarina solidariza-se, naturalmente, com o marido.
Muito em segredo, D. Fradique recebe em sua casa o Padre Simão Rodrigues. Feito o ponto da situação, o jesuíta revela ter aconselhado El-Rei D. João III a acabar com o patrocínio aos estudantes portugueses em universidades estrangeiras. E as últimas falas da compromitente entrevista são deste jeito: “Assim possa Vossa Paternidade ajudar-me, conforme prometeu.” “Antes que eu possa ajudar-vos… ajudai-me vós a mim. Quebrai as amarras do pernicioso e nefasto compromisso – sabeis perfeitamente ao que me refiro.”
A cena seguinte, de rotura entre Bernardim e Alvarenga, com que se inicia a II parte, indo adiante transcrita na íntegra, dispensa aqui pormenorizadas referências.
Entretanto Bernardim procura recompor-se do abalo sofrido. D. Catarina lê-lhe uma passagem do Elogio da Loucura, de Tomás Morus, quando chegam Jerónimo e Ester de Oliveira. Jerónimo dá notícia de que recebeu do reitor do Colégio de São Tomás convite para um lugar vago, como professor de Grego e Hebraico, que ele de bom grado gostaria de ceder a Bernardim. Isto porque, entretanto, começara a interessar-se pelo estudo das obras de arte, no âmbito do negócio mantido pelo sogro.
Bernardim agradece, comovido, mas recusa a oferta, dizendo que depois da traição de que foi vítima, já não se sente motivado para o ensino.
Jerónimo diz que o Padre Francisco Xavier já está em Lisboa. E que El-Rei o recebeu muito festivamente, na companhia do Padre Simão Rodrigues, o qual – como já é voz corrente – será o reitor do famigerado Colégio Paulo III.
No final de Do Desencanto à Revolta, Bernardim, pretendendo denunciar o menosprezo em que foram tidos os seus altos estudos universitários, assume-se como um simples escrevente de praça pública, em pleno Terreiro do Paço. Uma meretriz (Felícia do Rego) dita-lhe uma divertida carta para o marido, que está na Índia, a que se segue um monólogo delirante do próprio Bernardim. A certo passo: “Mas é só um momento! Um de cada vez, por favor! Atenderei a todos, minhas senhoras e meus senhores! E quanto pagareis vós pelo meu trabalho? Pois não pagareis 30 reais, nem 10, nem 5! Porque todo o meu trabalho será absolutamente gratuito! Porque há de ser esta a minha maneira de mostrar a todos o regozijo que tenho pelo meu feliz regresso a este País!, que adoro, – logo depois de Deus, bem o posso afirmar! E digo isto para tranquilizar algumas orelhas mais compridas que porventura me escutem. Não, não pagareis nada pelo meu trabalho! E é esta a minha maneira de servir Portugal!, escrevendo cartas, petições, requerimentos!, nas arcadas do Terreiro do Paço!, depois de haver concluido os meus estudos no famoso Colégio de Santa Bárbara, de Paris! (…)”
CENA 4
Em casa do mercador e armador Baltasar de Montemor, dias depois. Sala com mesa posta, à qual estão sentados o dono da casa e sua mulher, D. Margarida; o filho de ambos, Bernardim, junto de D. Catarina; e ainda D. Fradique Alvarenga. Refeição natalícia, já quase terminada. Serve à mesa um velho criado. Em tudo sinais de abundância, sem aparato excessivo. Entre os pratos, terrinas e travessas, alguns candelabros acesos. Ao fundo, grinaldas de verdura e flores, de que pendem, acesas, pequenas lanternas de metal e vidro colorido.
Ouve-se, longínquo, um festivo repicar de sinos. Bastante mais próximo, na rua, (presume-se), um pequeno grupo de frades canta, em latim, um motete alusivo à celebração religiosa.
Fradique Alvarenga enxuga umas lágrimas furtivas, com o seu lenço de cambraia.
MARGARIDA – Cantam divinamente estes fradinhos.
BERNARDIM – Concordo, minha mãe. Verdade se diga que não lhes falta tempo par ensaiar.
BALTASAR (reparando nas lágrimas de D. Fradique) – Então que é isso, D. Fradique? Lágrimas num dia de festa?
FRADIQUE – A primeira celebração do Natal, na irremediável ausência de D. Branca, minha extremosa esposa.
MARGARIDA – São as leis do Mundo e de Nosso Senhor. Que havemos de fazer? Conformarmo-nos.
Catarina levanta-se e, suaves modos, vai até junto de D. Fradique, sentado a uma cabeceira da mesa. E afaga-o, carinhosamente.)
CATARINA – Ora, animai-vos, meu “tio”. Não ficastes, a bem dizer, desamparado nesta vida. Vede como tendes parentes e amigos, que vos estimam.
FRADIQUE – E a todos fico obrigado. E muito.
BALTASAR (levanta-se.) – Dispensai-me por um instante. Eu vou ali, à porta, agradecer aos cantores a gentileza do motete e recompensá-los com algumas moedas.
MARGARIDA – Queres que vá contigo, Baltasar?
BALTASAR – Não vale a pena, Margarida. Faz companhia ao nosso convidado. (Sai.)
CATARINA (a D. Fradique) – Comereis um pouco mais deste excelente bolo de canela e noz-moscada?
FRADIQUE – Talvez não, Catarina. Dá-me então um pouco mais desse manjar-celeste, que bem merece o adjetivo.
CATARINA – Ou preferis os beijos-de-freira?
FRADIQUE – Pois agora também fico hesitante, entre os beijos-de-freira e o manjar-celeste. Ambas as coisas me são particularmente agradáveis. De uma e outra me deitarás três boas colheradas.
(D. Catarina serve-o)
FRADIQUE – Deus te guarde, “sobrinha”. Deus te guarde.
(Fora extinguem-se as vozes dos fradinhos-cantores.)
BERNARDIM – Lá se desmoronou a divina serenata. Como é curioso! O mesmo dinheiro pode fazer cantar e calar, segundo as circunstâncias!
(D. Catarina regressa ao seu lugar, junto de Bernardim.)
MARGARIDA – Propunha-vos a nossa Catarina, senhor D. Fradique, que comêsseis do bolo de canela e noz-moscada. Nem se lembrou, certamente, que essas e outras especiarias vinham de vossa casa – gentil oferta que muito agradecemos – e que essas preciosidades do Oriente são vulgaridades à vossa mesa.
(Volta a entrar Baltasar de Montemor.)
BALTASAR (que ouviu o comentário da mulher) – As nossas navietas andam por aí noutros percursos, carregando mercadorias bastante mais modestas. (E retoma o seu lugar.)
BERNARDIM – Em todo o caso, muito menos lucrativas.
(Agora um pouco mais distante, torna a ouvir-se o pequeno coro de frades, no motete natalício.)
BALTASAR – Diz-se por aí que El-Rei, nosso Senhor, mandou substituir o embaixador que tinha junto do Rei de França, enviando-lhe há poucas semanas D. Francisco de Noronha.
FRADIQUE (que se delicia com o manjar-celeste e com os beijos-de freira) – Assim é, na verdade, Baltasar amigo. E consta que a atividade diplomática do novo embaixador começa com um protesto. Porque o Rei de França, havendo proibido, em tempos, que os seus vassalos fossem à costa da Malagueta e ao Brasil – o que (é evidente), só prejudicaria os nossos interesses comerciais – acabou por… revogar essa determinação.
BALTASAR – Sim? Ignorava isso em absoluto.
MARGARIDA – Sendo assim, vós, mercadores que tratais com essas partes de África e de Brasil, ficais agora sujeitos a uma concorrência incómoda…
FRADIQUE – Exato. Embora tenha de admitir que outros mercadores haverá bastante mais prejudicados. As especiarias que transportam os meus navios vêm mormente das partes da Índia. Quanto à África… se lá vão as minhas naus e os meus galeões… é para uns carregamentos periódicos de escravos. Que se vendem na Europa, mas também no Brasil.
CATARINA – Pobres criaturas!
BERNARDIM – Até quando, meu Deus?! – Mas, pensando bem, senhor D. Fradique, como se poderá admitir que Deus Nosso Senhor, criador de todas as coisas, de todos os bens da Natureza, tenha concedido ao piedoso D. João III a aos seus súbditos o rigoroso e exclusivo monopólio…?
FRADIQUE – Entende-se, porque Deus Nosso Senhor, no seu imenso critério, concluiu que os Portugueses e os Espanhóis eram em particular vocacionados para a civilização dos selvagens, dos povos mais atrasados do globo terrestre.
BERNARDIM – Inevitável nos vem à memória o Tratado de Tordesilhas, mais o Sumo Pontífice dividindo o Mundo incógnito como quem divide uma laranja: “Tomai vós, Portugueses, esta metade: e vós outros, Espanhóis, esta outra. Explorai essas terras, suas gentes e suas riquezas, o melhor que puderdes e souberdes. E recebei, portanto, a minha bênção apostólica.”
FRADIQUE – Estou a falar-vos de civilização, senhor Bernardim de Montemor, e vós falais-me de exploração.
BERNARDIM – Por mal dos nossos pecados, senhor D. Fradique Alvarenga, são propósitos, objetivos que têm andado bem relacionados. E sabeis muito bem como esses africanos, a troco de umas contas de vidro, uns espelhinhos e outras bugigangas, nos “oferecem” – digamos – lingotes de ouro e pesadas presas de marfim. Cada um dá o que tem, não é verdade?
(Entretanto foram-se diluindo na distância, mais e mais, as vozes bem concertadas da serenata.)
BALTASAR – A conversação tem o seu interesse, indiscutivelmente, mas bem poderíamos passá-la a outro quadrante…
MARGARIDA (levantando-se) – Que posso eu ainda oferecer-vos, senhor D. Fradique? (E dirige-se para ele.) Toucinho-do-céu? Papos-de-anjo?
FRADIQUE – Que gentileza a vossa, minha boa amiga! Ambas iguarias me são prediletas. Um poucochinho de cada qual, e dar-me-ei por satisfeito.
(D. Margarida serve-lhe as duas especialidades.)
FRADIQUE – Deus vos pague, minha boa amiga. Deus vos pague.
BALTASAR – E o vosso Colégio de São Marcos, senhor D. Fradique?
FRADIQUE – Colégio Paulo III. É esse o nome definitivo.
BALTASAR (fazendo-se de novas) – Ah!
(D. Margarida regressa ao seu lugar.)
FRADIQUE – Já recebi o privilégio real e a bênção apostólica.
BALTASAR – Oh! Que honras!
(Um silêncio.)
FRADIQUE – Ainda não vos disse que ontem, ao princípio da tarde, me desloquei à Casa da Índia, com a intenção de pagar uns direitos sobre mercadorias. Sedas e damascos, principalmente. Levei comigo um escravo, com uma azêmola carregando os sacos de dinheiro que me pareceram necessários.
MARGARIDA – Tal era o valor das mercadorias recebidas!
FRADIQUE – Pois, embora me tivessem começado logo a contar o numerário, não houve tempo, até ao fecho da tesouraria, de aprontar o suficiente para satisfazer os direitos alfandegários.
BERNARDIM – Concho! Ou mais algumas mãos terá de haver, na Casa da Índia, a contar moeda, ou tereis de ser mais modesto no mercadejar dos panos do Oriente…
BALTASAR – Mas tinha eu perguntado, senhor D. Fradique, pelo vosso Colégio… pontifício.
FRADIQUE – Ora, pontifício!
BALTASAR – Na designação, digamos, na designação.
FRADIQUE (com certa ironia) – Uma homenagem de bom católico que me prezo de ser!
BALTASAR – Ótimo edifício. Excelentemente recuperado, o vosso Colégio, conforme tive oportunidade de verificar.
FRADIQUE – E os apetrechos de mobília!, a biblioteca, as tapeçarias! Os guadalmecins!
MARGARIDA – E vós, que sempre nos falais do edifício e dos objetos! Nunca das pessoas que de um e de outros se hão de servir!
FRADIQUE – Pois dir-vos-ei que haverá lugar para uns 300 alunos. Ainda este mês se tratará de abrir as inscrições.
CATARINA – Mas…e os mestres?
BALTASAR – E, sobretudo, o reitor?
FRADIQUE – Disso não gostaria eu de falar. Por enquanto. (Irritado, atafullha na boca umas colheradas de papos-de-anjo e toucinho-do-céu.)
BALTASAR – Pois desculpareis a insistência. Mas muito estranho nos parece, D. Fradique Alvarenga, que não queirais alargar-vos em considerações que naturalmente nos interessam.
MARGARIDA – E muito! De modo especial… a Bernardim.
FRADIQUE – Isto é dia de festa, amigos meus. Dia de agradável convívio entre duas famílias. Falaremos depois.
CATARINA – Agradável convívio, dizeis? E em que poderá o agradável convívio ser incompatível com o esclarecimento definitivo de uma situação que começa a parecer incómoda?
BALTASAR – Sempre esperei que, neste assunto, pudesse haver mais transparência.
(Enfadado, D. Fradique deixa cair, com aspereza, a colher no prato. E ergue-se, num rompante, nele se fixando, com estranheza, os olhares dos restantes convivas. Num intervalo de pesado silêncio, põe-se então a passear, nervosamente, de um lado ao outro da sala.)
FRADIQUE (pouco depois, voltando-se para Bernardim) – Considerais mesmo oportuno o esclarecimento desta causa, senhor Bernardim de Montemor?
BERNARDIM – Sem dúvida alguma, senhor D. Fradique.
FRADIQUE – Aqui, perante vossos pais e vossa mulher?
(Se uma certa inquietação desponta nas três pessoas referidas, isso contrasta com a absoluta serenidade de Bernardim.)
BERNARDIM – De nenhum ato menos digno me acusa a consciência. Meus pais e minha mulher, que em tudo se têm mostrado fiéis e solidários para comigo, bem merecem ser testemunhas de tudo o que houverdes por bem dizer-me.
FRADIQUE – Seja. (Uma pausa e mais alguns passos na sala.) Admitamos que, ao fim e ao cabo, vos era confiado o tão honroso quão espinhoso e difícil cargo de reitor do meu Colégio.
BERNARDIM – É o que me foi prometido e confirmado vezes sem conta, quer verbalmente quer por escrito.
FRADIQUE – Nesse caso, digo, que ideias seriam as vossas quanto à direção a dar ao meu querido estabelecimento de ensino?
BERNARDIM (levanta-se e afasta-se da mesa.) – Em Portugal, como se pode verificar, os filhos de gente nobre, de gente rica, continuam a ter acesso fácil aos estudos. E assim, havendo já no Reino um número suficiente de colégios que os privilegiam, bom seria que este novo colégio concedesse a desejável oportunidade a jovens de outras condições, filhos de gente menos abastada.
FRADIQUE – Esses poderão estudar nos conventos.
BERNARDIM – Onde, como é de supor, serão encaminhados para a vida religiosa. Ora, a nossa mocidade necessita de ascender a outros ramos do Saber e da Cultura.
FRADIQUE – Esqueceis a Universidade, há bem poucos anos transferida para Coimbra?
BERNARDIM – Dos que habitam Lisboa, apenas os jovens de maiores proventos terão meios bastantes para deslocar-se até Coimbra.
FRADIQUE – E que posso eu fazer?
BERNARDIM – Aceitar, prioritariamente, no Colégio Paulo III – se é esse o nome – moços de que a Fortuna e alguns homens parecem esquecer-se.
FRADIQUE – Bem vejo: que não iremos muito longe nas palavras. Mas sabei que o meu Colégio Paulo III – que Deus proteja! – será na verdade um dos melhores do Reino! E, assim espero, um viveiro de entranhadas e profundas vocações missionárias.
BERNARDIM – Ah! Pretendeis dar a primazia às missões?!
FRADIQUE – Assim é. Com efeito, por intermédio de um ilustre sacerdote, chegado há pouco de Roma, tomei esse compromisso com o Padre Francisco Xavier. O qual, por sua vez, enviado pele eminente Padre Inácio de Loiola, dentro de pouco chegará a Lisboa.
BERNARDIM – Não me digais que esse reverendo Padre Francisco Xavier é a “pessoa de qualidade” que vos foi muito recomendada não sei por quem, e meu presumível concorrente ao cargo de reitor…
FRADIQUE – O reverendo Padre Francisco Xavier?! Oh, não! Esse tem bem definido o seu destino, que é a evangelização da Índia e do Japão.
BERNARDIM – Mais e mais me surpreendo, com as vossas revelações.
FRADIQUE – Pois surpreendei-vos de uma vez por todas, senhor Bernardim de Montemor. (Pausa.) Não sereis vós – disso podereis ter bem a certeza a – o reitor do meu Colégio Paulo III.
(Patente nos circunstantes, uma certa perplexidade.)
BERNARDIM – Como assim?! É essa a vossa última palavra?!
FRADIQUE – A última!
BERNARDIM – Não vos julgava capaz duma traição semelhante!
(D. Catarina, que seguiu com visível inquietação os últimos passos do diálogo, levanta-se e corre para os braços do marido, que naturalmente a estreita, comovido.)
CATARINA (para D. Fradique) – Parece inadmissível, senhor meu “tio”, que, vivendo nós estes últimos meses debaixo do mesmo teto, desde que regressei de Paris e Antuérpia, tenhais guardado segredo de todas estas… endróminas… de todas estas manigâncias!
FRADIQUE – O segredo é a alma do negócio, como se costuma dizer.
BALTASAR (levantando-se) – E vós, senhor D. Fradique Alvarenga, até sois capaz de negociar a honra das pessoas!
(D. Margarida continua sentada, inevitavelmente abalada com estas revelações.)
BALTASAR – Mas dizer que meu filho – depois de tantas promessas que lhe fizestes – não será o reitor do vosso Colégio… pontifício… isso não chega! Conveniente seria que justificásseis uma decisão tão inesperada e absurda!
FRADIQUE – A orientação do meu Colégio Paulo III não pode cair nas mãos de quem não seja defensor intransigente da nossa Santa Religião!
MARGARIDA – O meu filho é um herege, porventura?
FRADIQUE – Pelo menos não se coíbe de relacionar-se intimamente com partidários do luteranismo!
BERNARDIM – E isso que tem, senhor? Acusais-me de ser tolerante?
FRADIQUE – Com os inimigos de Nosso Senhor Jesus Cristo não pode haver tolerância de espécie alguma! Não é verdade que mantendes estreitas relações de amizade com pessoas altamente suspeitas de luteranismo, como é o caso de Damião de Góis?
BERNARDIM – Não somente afirmo a amizade que me une a Damião de Góis mas testemunho ainda a grande honra que ela representa para mim!
FRADIQUE – Pois então… ide ensinar e dirigir qualquer colégio na Alemanha… ou na Inglaterra!
BERNARDIM – Este é o meu País! E tenho o pleno direito de nele habitar, e contribuir para o seu desenvolvimento, para o seu progresso!
FRADIQUE – Receio que estejais muito enganado!
BALTASAR (avançando uns passos para D. Fradique) – Pois até a nobre figura de Damião de Góis vos permitis “excomungar”? Damião de Góis não tem merecido a plena confiança do piedoso e catolicíssimo Rei D. João III? E outra pergunta, ainda: Que pensais vós de Erasmo?
FRADIQUE – Erasmo de Roterdão? Era um herege também. Que a terra lhe seja pesada como o chumbo!
MARGARIDA – Que desumanidade!
BALTASAR – Ignorais acaso que o Imperador Carlos V lhe concedeu o título de conselheiro e uma tença de 200 florins? E mais: Que o nosso catolicíssimo e insuspeito D. João III aceitou de Erasmo, o grande humanista, a dedicatória de uma obra, Chrysostomi lucubrationes?
FRADIQUE – Uma carta de recomendação de Damião de Góis! (Voltando-se para Bernardim.) Era esse o documento que pretendíeis apresentar-me, como prova da vossa idoneidade?! Pois bem escusada será essa… carta de recomendação. Não, senhor Bernardim de Montemor. Sereis porventura reitor de algum colégio – admito essa malfeitoria –, mas não no meu! (Sarcástico.) Não quereis incluir-vos na longa dinastia de reitores portugueses que têm governado o Colégio de Santa Bárbara?
BERNARDIM – Sabendo que foi esse o Colégio que eu frequentei, em Paris, não me parece de bom gosto qualquer referência vossa, assim, de ânimo leve, a esse estabelecimento de ensino, justamente bem considerado a nível europeu! Tanto mais que a “dinastia” – como vós dizeis…
FRADIQUE – Tudo gente altamente suspeita.
BERNARDIM – …a “dinastia” dos Gouveias é uma família de humanistas de muito prestígio, que muito honra Portugal. E há uma coisa que vós esqueceis – ou porventura pretendeis ignorar: É que aí pelo ano de 525, muito antes de eu entrar para o Colégio de Santa Bárbara, ali se instalava, como aluno interno, estudando Filosofia, o vosso tão admirado Francisco Xavier. O qual, pouco depois, teria ali por companheiro o não menos admirado Inácio de Loiola. (Era então reitor do Colégio o Doutor Diogo de Gouveia.)
FRADIQUE – Inácio de Loiola e Francisco Xavier, alunos do Colégio de Santa Bárbara?!
BERNARDIM – E outro esclarecimento poderei ainda fornecer-vos, senhor D. Fradique Alvarenga. É que essas duas destacadas figuras da Igreja – Inácio de Loiola e Francisco Xavier – tiveram o privilégio de ser colegas de um padre… Simão Rodrigues… que julgo ser muito da vossa confiança… e da vossa intimidade.
FRADIQUE – Não aguento mais permanecer nesta casa!
BALTASAR – Não seremos nós a obrigar-vos a isso, acreditai!
MARGARIDA – Ora, senhor D. Fradique, não sejais precipitado. Acalmai-vos. Recolhei, antes, ao vosso quarto, que tão carinhosamente vos preparámos. Porque aceitastes ser nosso hóspede, estes dois dias de festa.
CATARINA – Infortunada festa!
MARGARIDA – Recolhei, portanto, ao vosso quarto. E amanhã falaremos.
FRADIQUE – Regresso ao meu palacete, de onde não devia ter saído. – Vindes comigo, Catarina?
CATARINA – A esta hora, senhor? Além disso, o meu lugar é aqui, junto de meu marido. Que vós ofendestes gravemente.
FRADIQUE – Não retiro nada do que disse.
BERNARDIM – Nem eu tão-pouco. Antes me sinto inclinado a acrescentar umas palavras de censura, menos brandas, por certo.
MARGARIA – Sê moderado, Bernardim.
BERNARDIM – Vós, senhor D. Fradique, pretendeis comprar o Céu, com a criação de um colégio só para missionários!
FRADIQUE – Do meu dinheiro sou eu o dono e senhor absoluto!
BERNARDIM – Bem sei que vos orgulhais – e muito! – desse dinheiro, dessa riqueza. Mas qual a sua origem, afinal? As sedas e as pimentas da Índia, trazidas em naus e galeões perigosamente sobrecarregados! E ainda – o que é bastante mais deplorável – o tráfico de negros da Costa da Guiné!
(D. Catarina corre para os braços do marido.)
FRADIQUE – Inferno dos Infernos! Que nunca fui tão insultado! – Senhor Baltasar de Montemor: fazei-me a gentileza de me dispensar dois escravos vossos, que me acompanhem, com brandões acesos.
BALTASAR – Dois escravos, aí está o que vos não posso arranjar. Porque os não há nesta casa. Mas mandarei que vos acompanhem dois criados meus, com os quais atravessareis a cidade em segurança. (Sai.)
(D. Fradique encaminha-se para a saída. Com certo custo, volta-se ainda.)
FRADIQUE – Adeus, Catarina.
CATARINA (ainda abraçada ao marido) – Adeus… senhor D. Fradique Alvarenga.
FRADIQUE – Só peço a Deus que o Santo Ofício saiba defender Portugal de mouriscos e judeus!, de luteranos e de quantos hereges por aí andam gozando a liberdade que não merecem!
(Fora, de novo aproximado, desponta o motete natalício do coro dos fradinhos.)
NORBERTO ÁVILA