NORBERTO ÁVILA

 

O ROSTO LEVANTADO

 

Peça em 2 partes (1977-78)

 

Peça escrita em 1977-78. Ainda que recomendada pelo júri de um concurso promovido pela ADT (Associação Técnica e Artística da Descentralização Teatral), só passados mais de 30 anos foi editada, no I vol. da coletânea de obras dramáticas do autor – Algum Teatro (20 peças em 4 volumes), Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2009. Entretanto, estando já em preparação a sua estreia absoluta, em Évora, foi realizada com esta obra uma leitura encenada, num ciclo que a atriz e encenadora Silvina Pereira e o Teatro Maizum dedicavam então à dramaturgia portuguesa contemporânea, na Livraria Bulhosa (Entrecampos, Lisboa).

Nesta conformidade, ocorreu a referida primeira representação de O Rosto Levantado no Teatro Garcia de Resende, pela companhia do Cendrev (Centro Dramático de Évora), numa encenação de José Russo, a 15 de outubro de 2009. A peça é dedicada ao encenador brasileiro Augusto Boal, com quem o autor conviveu muito em Lisboa, nos anos de 1977-78.

SINOPSE, seguida de uma cena integral da I parte

Ao regressar do serviço militar, Geraldo, que apesar de jovem, exercera as funções de feitor do latifundiário José Redondo, não tem em vista retomar esse cargo. A experiência da guerra colonial e o convívio com alguns camaradas minimamente politizados haviam-lhe aberto os olhos para uma tão grande desigualdade social.

Num encontro com Violante, filha do casal latifundiário, Geraldo mostra-se reservado, e mesmo desinteressado no prosseguimento das relações amorosas que ambos chegaram a manter.

Na festa de receção que lhe á feita, Geraldo procura juntar-se aos trabalhadores, mas os patrões obrigam-no a sentar-se à sua mesa. Ao lado de Violante. Uma bem intencionada discursata de José Redondo quanto ao regresso de Geraldo e às promissoras relações do jovem com Violante levam o rapaz a afirmar que uma peça se modificou naquele mecanismo, três anos fora dele e agora já não serve. Rotura inevitável. Geraldo aceita permanecer na herdade como simples trabalhador. Alcina, a velha criada, conforta a sua menina Violante, enquanto José Redondo e a mulher discutem novas estratégias para o casamento da filha.

Geraldo, movido por um forte espírito solidário, vai influenciando os companheiros de trabalho, agora mais conscientes dos seus direitos.

O amor de Violante por Geraldo mantém-se e, com a concordância dos pais, a rapariga tenta uma reaproximação. O rapaz convence-a de que não é ela a mulher indicada para o acompanhar numa vida dura e arriscada.

Os movimentos sociais intensificam-se e, na sequência de greves em que Geraldo teve papel relevante, José Redondo propõe-lhe que aceite o cargo de feitor de uma outra herdade que possui, na condição de renunciar àquelas atividades políticas. Geraldo, porém, não aceita e reafirma exatamente o contrário.

 

CENA 6

Pátio em casa de José Redondo, festivamente iluminado com balões e lâmpadas de cor. Um arco ao fundo. Duas mesas postas, improvisadas sobre cavaletes, com toalhas brancas. A níveis diferente, porém. A da direita, junto à casa, bastante mais pequena mas muito mais fornecida, fica em plano um tanto superior, coisa de três degraus de altura, e parece reservada aos patrões e seus convidados. A outra, aos trabalhadores da herdade. Pretende-se que o espectador suponha que ela se prolonga para além do seu campo de visão.

De pé, e no seu plano de inferioridade, os trabalhadores cantam, em coro, lado a lado, mãos nos ombros uns dos outros. Entre eles, Carrajola, Espiga, Marrafa e Janeiro.

CORO – Lindos ramos cor de espr’ança,

Debruçada primavera.

Se este espera e desespera,

Outro espera e sempre alcança.

(Geraldo sai de casa, atravessa o plano superior e desce, na direção do Coro, juntando-lhe depois a sua voz.)

CORO – Outro espera e sempre alcança,

Quando a vontade é maior.

Muitas vozes enlaçadas

Cantam mais alto e melhor.

(Entra um grupo de trabalhadores, que vão colocar-se junto da mesa que lhes é destinada. Conversam em voz baixa.)

CORO – Cantam mais alto e melhor,

Sob o manto das estrelas.

Os tiranos, de assustados,

Fecham portas e janelas.

 (Secundina e Violante saem de casa. Esta última fica junto dos convidados, já sentados à mesa.)

SECUNDINA (em voz alta) – Eh lá! Vamos a acabar com a cantoria, que o patrão já aí vem.

CORO – Fecham portas e janelas,

Cercados de solidão.

Estas vozes enlaçadas,

Muitas, muitas vozes são.

(Surge José Redondo, visivelmente atordoado, fingindo, no entanto, sobriedade e boa disposição.)

REDONDO – Vamos a sentar! E a comer. – Desculpem esta demora.

(Geraldo toma assento à mesa dos trabalhadores. Sentada à outra mesa, Violante faz-lhe sinais para que venha ocupar o lugar que lhe reservou ao seu lado. Mas em vão. Ele parece não dar por isso.)

REDONDO (exuberante) – Mas então… o nosso Geraldo? Anda para aqui, homem.

GERALDO – Estou aqui muito bem.

REDONDO – Mas aqui é que é o teu lugar.

SECUNDINA – Olha agora o disparate. (Desce e vai ao encontro de Geraldo.) Não querem lá ver. Uma destas! (Secundina toma Geraldo por um braço e fá-lo levantar-se. Ele, a contragosto, acompanha-a à mesa dos senhores.)

REDONDO (indo-lhe ao encontro) – Bem regressado sejas, amigo Geraldo. Deixa cá ver esses ossos. (Abraça-o efusivamente.) Já sei que chegaste há umas horas. Desculpa não ter aparecido mais cedo. Mas não tenho andado bem do meu reumatismo, e deitei-me um bocado a descansar.

GERALDO – Cá por mim… não tem importância.

(Redondo, Secundina e Geraldo sentam-se. Alcina e outras criadas começam a servir a sopa. Do silêncio que então se faz apenas se destacam um ligeiro tilintar de talheres e o sorver da sopa por José Redondo. Com discretos sinais, Violante procura chamar-lhe a atenção.)

REDONDO (depois de limpar a boca ao guardanapo que tem ao pescoço) – Que é que estás aí a fazer fosquinhas, rapariga? Come lá a sopa, antes que arrefeça. (Levanta-se e bate com a faca no copo ainda vazio. Expetativa geral. E depois, pausadamente:) Não tenho nada a ver com as regras de “intiqueta”. Aqui não há dessas fantasias. Eu sei perfeitamente que nos banquetes e nos jantares e nos almoços de homenagem os discursos vêm no fim, já quando os dentes estão a pedir palito. Mas eu aqui estou em minha casa, e não vou ficar à espera que ninguém me autorize a fazer o que muito bem me apetecer. Era o que faltava! E se me apetece botar palavra logo no começo do jantar, que, para dizer a verdade, já nem é um jantar, mas uma ceia, boto palavra, e pronto. Isto porque – note-se bem – o que tenho a dizer é demasiado importante para que não venha logo à cabeça. (Pausa.) Outra razão ainda: é que me encontro em pleno uso da minha lucidez. Estou redondamente lúcido. E daqui a uns tantos copos… (Reparando que não há vinho na mesa.) Alcina! Isto aqui é a casa de Mafoma?!

ALCINA – Já lá vai, patrão. Só tenho duas mãos.

REDONDO – Daqui por uns tantos copos… não sei se saberei dizer o que me vai na alma. Assim é que é. (Pausa.) Amigo Geraldo: Vou logo direito ao assunto. O teu regresso a esta terra e a esta herdade causa-nos uma grande satisfação. Tanto mais que conseguiste escapar com vida e saúde, o que já não é pouco. Essas guerras de África, que parecem nunca mais ter fim, continuam a roubar-nos muitos braços valentes, indispensáveis ao amanho destes campos. Por outro lado, a verdade é não podemos deixar perder o que é nosso, as nossas ricas colónias, quero dizer: as nossas queridas províncias ultramarinas, como agora se diz. (A criada Alcina serve-lhe vinho.) Sem combustível não pode ser nada. (Retomando o discurso.) Nunca por lá andei, devo confessar, mas sempre lá tenho alguns interesses. E podia ter mais, se não fosse a teimosia de minha mulher.

SECUNDINA –  Sim, sim. Adiante.

REDONDO (depois de um trago de vinho) – De modo que, amigo Geraldo, ao ires cumprir o serviço militar em Angola, foste também defender o que me pertence.

GERALDO – Não o fiz por gosto, acredite.

JANEIRO – Essa é que é essa!

GERALDO – Pudesse eu ter escapado!

REDONDO – Foste também defender o que me pertence, repito, e por esse motivo te estou profundamente grato.

GERALDO – Não é nada que se agradeça, Sr. Redondo. Só na vontade livre há algum merecimento.

REDONDO – Não te faças modesto e deixa-me continuar. (Pausa.) Não me esqueço, amigo Geraldo, que, apesar da tua juventude, e até à tua partida, que muita inquietação nos causou, te mostraste digno do lugar que te confiei. Em boa hora, na verdade. Que sempre soubeste conduzir os meus negócios com mão segura e tirar bom proveito das terras e do pessoal.

MARRAFA – Enfim…

REDONDO – Por isso pus à tua disposição três hectares, para neles cultivares o que quiseres, já que os teus serviços eram dignos de muito maior recompensa, para além de qualquer salário a que tivesses direito.

GERALDO – Isso são águas passadas, Sr. José Redondo.

REDONDO – São águas passadas, mas quero trazê-las ao meu moinho. (Secundina e Violante riem-se.) E se tinhas, para teu uso pessoal, três hectares, passarás agora a ter seis hectares. (Secundina e Violante aplaudem.) Por enquanto. Porque, com a tua entrada para a nossa família, que penso não levará muito tempo, (olha interrogativamente para a filha) se pensará em coisa melhor. (Mais um trago de vinho.) E, já agora, não quero deixar de fazer aqui uma referência muito especial ao nosso amigo António Carrajola. Durante a ausência do Geraldo foi o Carrajola um feitor exemplar, cuja atuação se tornou muito apreciada. (Ligeiro murmúrio entre os trabalhadores.) Se alguém não está de acordo, o mais que pode fazer é calar-se e morder os beiços. (Retomando o assunto.) De qualquer modo, eu é que sou o patrão. E destes assuntos sei eu e mais ninguém. Estou lúcido. E sei muito bem o que digo.

SECUNDINA – Sim, sim. Adiante.

REDONDO – Não desfazendo no Geraldo, o Carrajola foi um feitor como deve ser. Por isso fica registado cá na minha lembrança. (O homem parece satisfeito com o elogio. Voltando-se para ele e levantando o copo de vinho.) À tua saúde, amigo. (E bebe mais um trago.) Como tinha ficado combinado, voltas ao teu lugar de simples trabalhador, já que temos a sorte de ter de novo entre nós o nosso querido Geraldo, a quem as funções cabem de direito.

CARRAJOLA – Ainda bem, patrão. Folgo muito com isso.

REDONDO – Amigos, amigos; negócios à parte.

CARRAJOLA – Eu mesmo já ia ficando cansado de mandar.

(Risos discretos entre os trabalhadores.)

REDONDO – Pois está bem. Sendo assim, o Geraldo não podia chegar em melhor ocasião. E é precisamente à saúde do Geraldo, cujas qualidades humanas e de trabalho não me cansarei de elogiar, que vou erguer o meu copo. Cheio, que assim é que é. (Acaba de encher o copo. Ergue-o depois em brinde. Todos o acompanham, exceto Geraldo.) À saúde do Geraldo e da minha Violante! Pela felicidade dos noivos! (Bebe; esvazia o copo completamente.)

GERALDO (de braços cruzados) – Que tenham todos muita saúde.

SECUNDINA – E não bebes?

REDONDO – Não bebes?

GERALDO – Estou aqui em luta com a minha própria consciência. Porque, se não beber, ficarei por mal-educado. Mas, se beber, terei de acrescentar algumas palavras. E o que eu posso acrescentar, neste momento, não é muito favorável ao bom andamento deste convívio, oportunidade rara nesta casa. E especialmente para os menos afortunados, que ao longo do ano comem pão com toucinho, e pouco mais, é muito conveniente que este jantar, tão bem servido, (mais nesta mesa do que naquela) continue por mais algum tempo.

(José Redondo, fixando-o, boquiaberto e desconfiado, vai-se sentando vagarosamente. Expetativa também, embora menos acentuada, entre os convivas de ambas as mesas.)

GERALDO – E também ficarei por mal-educado se gozar as delícias desta refeição, com sorrisinhos de falso contentamento, e disser depois, com toda a franqueza, o que penso de tudo isto. E por mal-educado ficarei ainda se me levantar e sair, antes da tempestade, dizendo apenas: adeus.

SECUNDINA (vencendo a perplexidade) – Valha-me Nossa Senhora! O que é isso, meu filho? Que disparates são esses? – Violante, o que foi que se passou?

(Silêncio. Violante, cabisbaixa, torcendo as mãos. Apesar de tudo, na mesa dos trabalhadores, a refeição prossegue: asas e pernas de frango levadas à boca, com justificável prazer.)

VIOLANTE – Nada. Não se passou nada.

SECUNDINA – Alguma coisa se passou, com certeza. Alguma coisa aconteceu.

GERALDO – Aconteceu que uma peça se modificou neste mecanismo. Três anos fora dele, e agora já não serve.

REDONDO – Ou falas cá a minha linguagem, Geraldo, ou fico sem perceber o que pretendes com esses rodeios.

(Violante começa a chorar, baixinho.)

SECUNDINA – Bem se diz que essas guerras têm dado cabo da cabeça dos nossos rapazes.

REDONDO – Cala-te! (Depois de olhar alternadamente para Geraldo e Violante.) – O que foi? Zangaram-se? Logo hoje?

(Violante reclina a cabeça no ombro de Geraldo.)

GERALDO – Descobrimos – e ainda bem – que não haverá um caminho para ambos, mas que cada qual terá o seu, aberto e lançado em direções diferentes, e até opostas.

REDONDO – Ah, não se dão bem, afinal? E só agora é que viram isso? – Isto aqui anda a mão do Diabo, ninguém me diga que não!

GERALDO – Se é a mão do Diabo, não sei. A verdade é que me impediu de cair numa ratoeira, que, lá por ser dourada, não deixa de ser uma ratoeira.

REDONDO – Uma ratoeira? Mas isso o que é? Que provocação é esta? Não creio que tenha bebido demasiado. E não consigo entender nada desta algaraviada.

GERALDO – Falaremos com mais tempo.

REDONDO – Não! Há-de ser já. Quero saber a que é que se deve essa tua mudança!

GERALDO – Na verdade, Sr. José Redondo, o momento não é nada oportuno para tratarmos destes assuntos. Esta gente nada tem a ver com a minha decisão. (Toma com ambas as mãos a cabeça de Violante, reclinada no ombro dele, e endireita-a, desviando-a de si.)

(Os trabalhadores, silenciosos e discretos espectadores desta cena, continuam a comer e a beber.)

REDONDO – Hás-de falar!

GERALDO – Pensei que seria preferível termos esta conversa em particular. Não por minha causa, que não me faz diferença. Mas por si, pela patroa, e pela menina!

SECUNDINA – Valha-me Nossa Senhora!

REDONDO – Não ! (Levanta-se e afasta-se da mesa.) Isto há-de ficar aqui bem esmiuçado. Tintim por tintim.

GERALDO – Pois seja. Já que assim quer. E já que há bocado nos disse que o António Carrajola me substituiu, com muita competência, enquanto estive em Angola, o que eu desejava sugerir é que ele continuasse a substituir-me. E definitivamente.

(José Redondo, nervoso, caminha de um lado ao outro.)

SECUNDINA – Vieste fazer pouco de nós, depois destes três anos? Antes tivesses ficado por lá, com cinquenta tiros na cabeça!

GERALDO – Obrigado. (Pausa.) Na verdade, devo confessar que perdi aquelas qualidades que tinha, sempre tão apreciadas nesta casa: as de saber tirar do pessoal o maior rendimento possível, pelo menor salário.

REDONDO – Fogo do Inferno! Pois é isso o que tu queres?! É isso? (Pausa.) Seja! Hás-de ser feitor na terra de outro, que não na minha!

GERALDO – Agradeço. (Levanta-se.) Não pretendo ser feitor em parte nenhuma. Sei trabalhar como qualquer um.

REDONDO – Sim. E hás-de arrepender-te mais vezes que as bagas de suor que te escorrerem pela cara.

GERALDO – Cara de homem honrado seja ela, que ao fim do trabalho se possa trazer levantada.

SECUNDINA (erguendo-se) – O que pretendes dizer com isso, cão tinhoso? Que o teu patrão não pode trazer a cara levantada? É isso? É? (Categórica.) Desaparece desta casa, imediatamente!

GERALDO – Obedeço. Desapareço imediatamente. Os patrões existem para mandar. E nós para obedecer. Por enquanto.

(Violante ergue-se, de súbito, e sai, num choro convulsivo.)

REDONDO – Secundina! Não te metas onde não és chamada. Isto é só para homens. Vai antes enxugar as lágrimas daquela desgraçada. Serviu de muito criá-la com todos os cuidados, para agora ser escarnecida por um valdevinos!, um pelintra!, um zé-ninguém sem eira nem beira!, que não tinha onde cair morto! e que eu próprio – que besta que eu fui! – promovi a feitor e meu braço direito! Sorte malvada!

SECUNDINA (para Geraldo, espumando de raiva) – Ainda estás aí, filho duma cabra?!

GERALDO (preparando-se para sair) – Devolvo-lhe a cabra e deixo as minha despedidas. A todos. (Acena aos trabalhadores, que continuam a comer e a beber silenciosamente.) Adeus. (Alguns correspondem-lhe à saudação e continuam à mesa.)

REDONDO (de súbito) – Geraldo!

GERALDO – Diga.

REDONDO – Peço-te desculpa.

GERALDO – Não se fala mais nisso.

(Carrajola fica na expetativa.)

REDONDO – Pois deixas de ser meu feitor. E neste aspeto estamos ambos de acordo. Mas para que vejas que não tenho maus sentimentos, e que não guardo rancores a ninguém, proponho-te que fiques, como um vulgar trabalhador.

(Um silêncio prolongado e grave.)

GERALDO (depois de olhar para os companheiros) – Aceito. Boa noite. (Retira-se, pelo arco do fundo.)

SECUNDINA (descendo ao nível do pátio) – Ainda comem, estes desalmados! Não têm vergonha? Depois do que aconteceu? (Eles continuam, calmamente, a comer e a beber.) Acabou-se o banquete! (Bate com o punho na mesa.) Não têm outros momentos para comezainas?

JANEIRO – Quando?

SECUNDINA – Isto devia ter ido tudo para o Asilo das Florinhas do Coração de Jesus! (Voltando-lhes as costas e regressando ao nível superior, onde ainda se encontra o marido.) Vão-se embora para as suas casas! Desapareçam!

(Os trabalhadores levantaram-se e, antes de saírem, pelo arco do fundo, escondem nas roupas alguns bocados de comida e garrafas de vinho. De todos eles só Carrajola, o reconfirmado feitor, continuará em cena.)

SECUNDINA (ao marido) – Vem deitar-te, homem (Entrando em casa.) Seja tudo em desconto dos nossos pecados.

(Vagarosamente, Carrajola vai ao encontro do patrão.)

CARRAJOLA (depois de um prolongado silêncio) – Já sabe que pode contar comigo. Para o que der e vier.

REDONDO (colocando-lhe a mão no ombro) – Obrigado. Carrajola. E bem que vais ser preciso. Esse patife, que se permitiu fazer pouco de mim e da minha família! Mal sabe ele no que se meteu. – Não sei se percebeste o meu jogo.

CARRAJOLA (untuoso) – Percebi perfeitamente.

REDONDO – Ainda que me conviesse tê-lo a cem léguas de distância da minha casa, dá-me muito mais satisfação vê-lo curvar a espinha como um trabalhador qualquer, sob as tuas ordens.

CARRAJOLA – Deixe-o cá comigo. (Retirando-se.) Boa noite, patrão. Veja se descansa, que é o que mais lhe falta.

REDONDO (voltando-se) – Carrajola. (Ele volta-se também.) Já sabes que tens seis hectares à disposição para o teu uso pessoal.

CARRAJOLA – Bem haja, patrão. (Vai saindo.)

REDONDO – Foi quanto ele perdeu. (Dirigindo-se para casa.) Perdeu mais. Pérolas a porcos. Foi isso. Mas estou lúcido, felizmente. Estou lúcido.

(Carrajola sai pelo arco do fundo.)

CORO (fora) – Lindos ramos cor de esp’rança,

Debruçada primavera.

Se este espera e desespera,

Outro espera e sempre alcança.

NORBERTO ÁVILA

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