MARIONETAS  E  DRAMATURGIA

 

Chegou o momento de nos interrogarmos sobre se o teatro de marionetas necessita – ou exige mesmo – um determinado tipo de dramaturgia. (E aqui entenda-se dramaturgia no seu sentido primeiro: o da arte-ciência da escrita de textos teatrais).

Para o teatro de ator, como é sabido, a escolha do texto dramático faz-se – ou deve fazer-se – em função das capacidades artísticas e técnicas do grupo ou companhia que o vai representar. Essas companhias, esses grupos, dispõem todos de comediantes cujos instrumentos de trabalho são essencialmente um corpo e uma voz. Só que, não sendo iguais em todos a predisposição natural e a formação artística, vêem-se uns mais propensos e mais ajustados a um determinado tipo de repertório. E assim, atores excelentes pode haver que representem com brilho uma comédia de “boulevard”, a quem seja desaconselhada a representação duma tragédia grega.

Tudo isto é ainda mais problemático quando passamos ao domínio específico do teatro de marionetas. Principalmente por serem tão diversos os tipos de marionetas existentes: marionetas de luva, de vara, de fios, etc., etc. E, independentemente da habilidade dos seus construtores e manipuladores, cada tipo de marioneta tem as suas possibilidades e os seus limites de expressão. E assim é que a marioneta de luva – cujo processo de animação é normalmente mais rudimentar e de mais fácil aprendizagem – nos parece muito ligada à atividade escolar, veiculando uma dramaturgia necessariamente simples e de acesso imediato. Por outro lado, não há dúvida de que a maior parte dos marionetistas, ao incluirem no seu repertório os grandes textos da dramaturgia –  Sonho duma Noite de Verão, Fausto, O Rei Ubu – não deixarão de ter em conta que a complexidade e a riqueza desta literatura dramática encontrará muito maior eficácia se forem utilizadas marionetas dotadas de maiores possibilidades técnicas e, consequentemente, de mais requintada expressão artística.

Assim, podemos talvez afirmar que às formas dramatúrgicas mais simples convêm perfeitamente as marionetas de estrutura e manipulação rudimentares; às formas dramatúrgicas mais evoluidas convêm, isso sim, as marionetas de estrutura e manipulação mais complexa.

Curioso é verificar que algumas peças escritas para marionetas fazem hoje parte do repertório do teatro de atores. Pensemos em Valle-Inclán, em Ghelderode, em García Lorca. Entre nós, o exemplo mais típico é certamente o das “óperas” de António José da Silva, hoje raramente representadas por marionetas. Até porque, em Portugal, bem poucos grupos o poderiam fazer.

Em julho 1985 estreava-se nesta mesma sala D. Quixote e Sancho Pança, pelo grupo Marionetas de Lisboa, para o qual eu próprio fiz a adaptação que pareceu conveniente. No programa, ao pretender justificar o método escolhido, permiti-me escrever que o texto de António José da Silva “ é uma penosa e desencorajante selva de metáforas, alusões mitológicas, modismos, jogos de palavras, pesadíssimas frases de ínvia sintaxe, com muitos ques e porques. (…) Ao reelaborar a peça do Judeu, foi minha preocupação manter certas caraterísticas do estilo da obra, tornando esse texto, simultaneamente, fácil de dizer e de entender.”

Isto é afirmar que o que nos parece menos adequado à sensibilidade e à disponiblidade do espectador contemporâneo, nas obras dramáticas de António José da Silva, é a sobrecarregada forma literária. Das virtualidades desta dramaturgia barroca, em termos de visualização cénica, não há que duvidar.

E se por um lado, como se vê, um certo repertório concebido para marionetas pode ser representado por atores, é um facto indesmentível que muitas e importantes peças escritas para atores dificilmente suportariam uma transposição para o mundo maravilhoso das marionetas. O Cerejal ou As Três Irmãs, de Tchekov; Casa de Boneca ou O Pato Selvagem, de Ibsen, poderão servir de exemplo. Isto porque estas obras, certamente magníficas, se caraterizam por uma força dramática, uma teatralidade que assenta em ricas interioridades psicológicas, no confronto de ideias demasiado abstratas, subtilezas para as quais a marioneta não é, naturalmente, vocacionada.

Ao teatro de marionetas convém, julgamos nós, uma literatura dramática que procure antes os domínios poético e satírico, que faça um constante apelo à imaginação e à fantasia. Porque o vulgar e o quotidiano, servidos tal e qual, parecem inimigos mortais da marioneta.

Não é por acaso que a dramaturgia específica deste género teatral procura tantas vezes o maravilhoso dos contos tradicionais e a teatralidade exuberante de certas obras do repertório clássico. Isto é um facto que não deve deixar de ter em consideração todo aquele que se disponha a escrever ou adaptar textos destinados ao teatro de marionetas.

NORBERTO ÁVILA

 

*Intervenção na mesa-redonda Marionetas – Técnicas e Dimensão Pedagógica, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, no Centro de Arte Moderna (1986), em que, além de Norberto Ávila, participaram o marionetista José Carlos Barros, o encenador José Caldas e a psicóloga Natália Pais, e ainda 4 especialistas da Checoslováquia: Tomas Engel, Karel Hejcman, Jirí Jaros e Vera Procházková.

Texto publicado na revista Atlântida (Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo, Açores), vol. XXXII, 2º semestre, 1987.

 

www.norberto-avila.eu